quinta-feira, 11 de maio de 2023

 

ENTREVISTA A RODETH GIL

“Angola tem tudo para poder marchar como quiser”

 

Nhuca Júnior

 

(entrevista publicada no Jornal de Angola no dia 11 de Novembro de 2018)

 

Influenciada pelo programa "Angola Combatente", aderiu à luta armada contra o colonialismo português aos 12 anos, juntando-se a um grupo de mais de 70 pessoas que chegaram à III Região Político-Militar, aberta pelo Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Rodeth Gil, a pessoa de quem se fala, destapou o seu baú de memórias numa conversa, aberta e distendida, com o Jornal de Angola, durante a qual falou também do presente e do futuro de um povo que não tem necessidade de viver na condição de pobreza. "Nós temos possibilidades de ter as mínimas condições desde que estejamos unidos em torno da mesma ideia e da mesma ansiedade de acabarmos com a pobreza", afirmou Rodeth Gil. À leitura.

 

Onde esteve no dia da proclamação da Independência? Esta pergunta foi-me feita, há pouco tempo, quando vinha para o Jornal de Angola. Lembro-me muito bem, porque é uma data que me marcou muito, não só por ser da proclamação da Independência, mas também pela missão que estava a cumprir nesse dia. Qual era a missão? A direcção do partido, na voz do camarada Presidente Neto, deu-me a missão de cuidar do camarada Aníbal de Melo, que estava incomodado devido a um acidente de viação que sofreu. Ele estava acamado, por isso fui incumbida para o cuidar nesse dia. Estava a cuidá-lo na condição de enfermeira? Sim, como enfermeira militar. Nós tínhamos um posto médico na Vila Alice. Na altura, o MPLA acabava de entrar e toda a desconfiança era pouca. O posto médico estava onde é hoje o Comité Provincial de Luanda do MPLA? Estava no lado oposto. O posto médico funcionava praticamente como SAMM (Serviço de Assistência Médica Militar). Como correu o trabalho nesse dia? Eu estava a cuidar de um dos líderes do MPLA. Aníbal de Melo desapareceu fisicamente nesse dia. Acho que não aceitou a posição de imobilidade em que se encontrava e por não poder estar presente na cerimónia de proclamação da Independência. A dada altura, chamou-me para me dizer para ir a casa buscar os meus filhos, uma rapariga e um rapaz, porque, segundo ele, não deviam ficar sozinhos naquele dia. Eu fui, porque também era só atravessar a estrada para chegar a casa. No regresso, com os miúdos, já não encontrei o chefe na sala onde o havia deixado. Fiquei à sua procura e, quando vou para a varanda, encontro-o estendido no chão. Atirou-se do primeiro andar da vivenda. Acho que ele não aceitou as condições físicas em que se encontrava e por não poder estar no acto de proclamação da Independência. Já o encontrou morto? Sim, já estava morto quando regressei ao local. Já não houve socorro. Procurei os camaradas Luísa Vastock, enfermeira chefe, Chamavo, Cassessa e Muambaka. Os doutores Cassessa e Muambaka eram grandes médicos na guerrilha. Ausentou-se durante quanto tempo? Foram apenas dez minutos, porque vivia mesmo ao lado da casa onde cuidava do camarada Aníbal de Melo. Durante o tempo que esteve com Aníbal de Melo conversaram bastante sofre o fim da colonização portuguesa em Angola, que estava prestes a acontecer? Com o camarada Aníbal de Melo conversei bastante enquanto cuidava dele. Ele sabia dos preparativos que estavam a ser feitos para a proclamação da Independência. Quando ouvíamos o barulho que vinha de Kifangondo, ele dizia "para quê esse tiroteio todo?" "Para quê esses obuses?" "É para não sermos independentes?" "Não vão conseguir!" Hoje, vamos ser independentes".

O acidente de viação ocorreu na Tanzânia ou numa zona da III Região Político-Militar? O acidente de viação aconteceu na Tanzânia, onde o camarada Aníbal de Melo era representante do MPLA. No dia do acidente esteve com o camarada Afonso Van-Dúnem "Mbinda", que era quem conduzia a viatura. Comecei a cuidar do camarada Aníbal de Melo seis dias antes da proclamação da Independência. Rodeth Gil deixou de ter, há anos, vida pública, depois de ter deixado de exercer o cargo de secretária de Estado dos Assuntos Sociais. O que faz, actualmente? Fiquei à frente da Secretaria de Estado dos Assuntos Sociais durante 12 anos - de Março de 1980 a Abril de 1992. Por ter achado que já estava há muito tempo a dirigir um sector e estar convicta de que o sector já poderia ser liderada por uma outra pessoa, decidi ter chegado a hora de deixar o cargo, decisão que transmiti ao Presidente José Eduardo dos Santos. Numa reunião do Conselho de Defesa e Segurança, o Presidente disse-me que eu não poderia deixar ainda a direcção da Secretaria de Estado dos Assuntos Sociais. Na reunião, decidiu-se que eu deveria criar as condições para que a Secretaria fosse elevada a Ministério, tendo em conta os passos significativos e a evolução que o sector conheceu. Deram-me um tempo e, antes do fim do prazo, foi criado o Ministério da Reinserção Social. Apresentei o documento que deu corpo à criação do Ministério. A partir daí, o Presidente aceitou a minha retirada.

Para onde foi? Quis aprender a língua inglesa e ter uma outra formação que me permitisse dar outros passos a nível do conhecimento. O Presidente aceitou. Fui para a Inglaterra, onde fiz um ano de língua, no Metropole College e, depois, engenharia informática. Quando desempenhou o cargo, Angola acolhia milhares de refugiados sul-africanos e namibianos, além de dar assistência a deslocados que, saídos das áreas de origem, procuravam refúgio nas capitais de província, onde havia maior segurança. Quais eram então as principais linhas de força da política de assistência social? Neste período, o que, realmente, achava necessário era entrar em contacto e trabalhar directamente com as agências das Nações Unidas e mobilizar outras organizações humanitárias para apoiarem Angola. Participei em várias conferências internacionais. Numa reunião, no Ministério do Interior, o Presidente José Eduardo dos Santos disse para mim: "a camarada Rodeth Gil, na qualidade de secretária de Estado dos Assuntos Sociais, tem de ser agressiva para fazermos face à guerra que estamos a viver". Com esta “palavra de ordem”, redobrei os contactos com organizações internacionais, solicitando-lhes todo o tipo de apoio, em medicamento, comida e material de ensino. Com o amparo das FAPLA, tínhamos a certeza absoluta de que, nas zonas onde estavam deslocados e refugiados, o inimigo não poderia pisar. E não conseguiu mesmo, porque o próprio povo estava também munido de meios de segurança. Tivemos problemas, de Cabinda ao Cunene, mas não faltou comida nem medicamento. E as escolas foram lançadas, algumas mesmo debaixo de árvores. Mas havia sempre aulas. Que legado acha ter deixado na Secretaria de Estado dos Assuntos Sociais? Quando assumi a liderança da Secretaria de Estado dos Assuntos Sociais encontrei apenas três assistentes sociais. Para trabalhar com deslocados, com população vulnerável, o quadro social é fundamental. Encontrei os camaradas José António Martins, Maria da Luz e Teresa Rocha. Quando cheguei à secretaria, o primeiro trabalho que fiz, para poder conhecer melhor o sector, foi lidar com o pessoal de base, desde o trabalhador da limpeza ao estivador, até chegar ao director nacional. Quando entrei houve aquela linguagem de que ela não é doutorada, não tem curso superior, por isso não vai conseguir dirigir. Não se falava disso dentro do serviço. Mas algumas pessoas alheias ao sector especulavam. Afinal, fomos bem sucedidos. Fiquei com a impressão, no dia em que acertámos a realização da entrevista, de que, ultimamente, a prática da agricultura é um dos seus afazeres. Está a praticar agricultura familiar ou empresarial? (risos)Quero praticar agricultura familiar. A agricultura empresarial requer pessoal e meios. Não temos meios. Estou a tentar fazer agricultura familiar, mas também preciso de meios. Quando ligou para mim, estava a lutar para pôr o meu tractor a andar. Não consegui porque está com problemas na bomba injectora. Eu frequentei, como militar, um curso de mecânica, por seis meses, - é muito pouco tempo -, por isso gosto de estar ao lado dos mecânicos para acompanhar o trabalho. Ainda acredita na máxima de Agostinho Neto, segundo a qual "a agricultura é a base e a indústria o factor decisivo"? Sempre digo que não podemos substituir esta palavra por qualquer palavra nova que seja. Não foi em vão que Agostinho Neto lançou esta palavra de ordem. O presidente Neto tinha experiência. O povo em geral sabe que, sem a agricultura, não se pode viver. Como é que se pode dizer que, para acabar com a fome, você deve levar a vida a comprar (importar)? A maioria dos angolanos continua mergulhada na pobreza 43 anos depois da Independência. Do ponto de vista de execução, o que faltou ao Programa Maior do MPLA? Não gostaria de fazer grandes comentários sobre esta situação. Não gosto de “chorar sobre o leite derramado”. Devemos pensar que para a frente é o caminho. Se cometemos erros, vamos colocar os erros no passado. Devemos estar é com a actual direcção do Governo e do partido para fazermos o melhor. Angola não é pobre. Ainda ontem ouvi que, no Curoca, província do Cunene, foi descoberto granito negro. O que nós precisamos é pôr as nossas cabeças a funcionar. O camarada Agostinho Neto dizia "por onde não passa o seu braço, põe lá o seu miolo". Se o nosso braço não entra num buraco, a nossa inteligência pode entrar. Com que sentimento fica quando sai à rua e vê que, na prática, alguns dos motivos pelos quais milhares de pessoas da sua geração lutaram contra o colonialismo português ainda estão presentes na vida de cidadãos de um país potencialmente rico? Eu diria que a palavra independência diz tudo. Se compararmos o homem escravo e o homem independente, o homem independente tem tudo para poder marchar como quiser. É só uma questão de utilizar a inteligência e saber o que quer para o seu futuro. Nós temos possibilidades de ter as mínimas condições desde que estejamos unidos em torno da mesma ideia, da mesma ansiedade de acabarmos com a pobreza. Os angolanos não têm necessidade de viver na condição de pobreza. O MPLA teve uma forte presença no leste de Angola, tendo, por esta razão, arrastado para as suas fileiras centenas de jovens locais, que participaram na luta armada pela Independência Nacional. Rodeth Gil integrou um grupo de 79 pessoas, entre as quais quatro mulheres. Conte-nos, de forma sucinta, o percurso deste grupo. Este grupo mobiliza-se a partir de Teixeira de Sousa (actual Luau, no Moxico), em 1962. O chefe da equipa que incentiva este grupo de criancinhas é um camarada que era administrador na era colonial em Malanje, a quem chamávamos “padrinho Miguel”. No grupo não havia ninguém com mais de 20 anos. Eu tinha 12. O chefe da equipa encontrou uma forma de retirada deste grupo de Teixeira de Sousa, fazendo-o atravessar a fronteira, para entrar no Congo Kinshasa e dali para a Zâmbia, onde se encontrava o camarada Aníbal de Melo como representante do MPLA. A ansiedade era de luta para a libertação nacional. Uma pessoa não livre não consegue trilhar outras ideias. Esta equipa de 70 e tal camaradas foi recebida pelo camarada Aníbal de Melo e, depois, pelo Presidente Neto. O grupo foi abrir depois a III Região Político-Militar. Quem são as outras mulheres? São as camaradas Maria Fátima, Alice Guilherme Wandundu, minha prima, já falecidas, e Amélia, mulher do camarada Jamba Yamina. A camarada Amélia era a mais velha do grupo. Uma criança de 12 anos já tinha consciência política? Uma criança de 12 anos daquele tempo não é igual a uma criança de hoje. O facto de ser filha de pastor contribuiu para que tivesse a capacidade de ter esta noção. Os pastores deram um impulso maior à luta armada contra o colonialismo português e entendiam a palavra liberdade. A III Região Político-Militar não foi aberta por Daniel Chipenda? Não é verdade! Foi aberta pelo Presidente Neto. O Daniel Chipenda vem depois. Este grupo do Chipenda, do qual faço parte, é dirigido pelo próprio Presidente Neto. Encontrámos na zona que já estava aberta os camaradas Dilolwa, Petroff, Ngakumono e um outro camarada que depois vai para a facção Chipenda. Com a entrada destes camaradas, houve uma mobilização massiva de jovens na Zona A, da III Região Político-Militar. Houve o primeiro curso no CIR - Centro de Instrução Revolucionária. O primeiro curso termina com a participação de muita gente. Estes depois são espalhados por várias zonas e abriram a IV Região Político-Militar.

Como aderiu à luta pela Independência Nacional? Ouvindo o "Angola Combatente". Aliás, foi este programa que incentivou a ida para a guerrilha deste grupo de mais de 70 adolescentes. Entregamo-nos a um movimento sério que lutava pela Independência Nacional. A presença feminina fez a diferença em algumas das etapas da luta armada? Havia muitas mulheres, algumas das quais tinham como tarefa principal fortalecer a retaguarda dos combates e assegurar a logística. Outras serviam como guias. Foi muito importante a participação das mulheres. Apenas ficou na III Região Político-Militar? Só estive na III Região. Comandei depois um sector que estava próximo da IV Região. O meu marido, Henrique Gil, e o camarada Kumbi Diazabu foram os dois comandantes na abertura da IV Região. Acha que as revoltas do Leste e Activa, duas facções que surgiram no MPLA, refrearam, até certo ponto, o ímpeto da resistência armada desencadeada pelo MPLA? Estremeceu um bocadinho! Uma pessoa que vê as suas ideias reprovadas pela maioria fica sempre sozinha. A maioria reprovou as ideias dos mentores das duas revoltas. Há uma interligação entre a Revolta do Leste e a Revolta de Jibóia? Ou seja, são a mesma coisa? São a mesma coisa. O Chipenda também queria ter o seu partido, por insatisfação, quando vai para o leste. Acompanhou por perto o desenrolar da Revolta do Leste? Quando aconteceu a revolta do Chipenda, eu já estava, há um mês, na Tanzânia, por orientação do Presidente Neto. Foi num ano em que o Presidente Neto retirou muitas crianças da guerrilha para mandá-las para vários países socialistas a fim de estudarem. Quando o Presidente Neto sai do maquis para a Tanzânia, já havia um tumulto muito grande no leste. O MPLA estava dividido entre MPLA Chipenda e MPLA Neto. Quando chegou à Tanzânia, Neto convocou uma reunião, na qual disse que "o MPLA estava dividido, mas não podemos chamar MPLA Chipenda. É Revolta Chipenda". O Neto disse ainda que quem quisesse juntar-se à Revolta Chipenda, podia ir. E quem quisesse ficar com a direcção do movimento, podia ficar. Houve uma explosão muito grande dos militantes presentes. Ninguém queria ouvir falar na Revolta Chipenda. O MPLA entrou em Angola vitoriosamente. O MPLA Chipenda entrou com dúvidas. Não teve militantes. Se tivesse militantes, teria tido pelo menos uma sede numa província. A derrota do Chipenda começou no próprio leste. Quando se utilizava a linguagem Revolta do Leste, o pessoal do leste dizia "alto aí, Revolta Chipenda, sim, e não Revolta do Leste" O leste não aderiu. E os que aderiram à Revolta Chipenda foram maioritariamente indivíduos do sul, o que deu a entender que o Chipenda defendia o regionalismo. O Chipenda começou a perder credibilidade por este tipo de atitude. Os indivíduos do leste aceitaram ficar com a direcção do MPLA, liderada pelo camarada Neto. Mas o comandante "Jibóia" foi do leste. Conheceu-o? Conheci-o. Mas quem era o "Jibóia" para influenciar o povo do leste? Lembra-se de quando veio a Luanda? Eu fui destacada para a província do Bié. Por determinação do Presidente Neto, os camaradas Lúcio Lara e Joaquim Kapango foram buscar-me ao comando onde estava no leste para me colocarem no Bié para comandar as FAPLA e ser coordenadora da Comissão Directiva do MPLA no Bié. Antes da Independência? Sim, antes da Independência. Foi quando o MPLA entrou nas cidades. Quando é que chega a Luanda? Cheguei a Luanda em 1976 porque vim em busca de armamento. No início da entrevista, disse-me que esteve a cuidar de Aníbal de Melo na véspera da Independência. Depois da Independência, eu saí de Luanda. E regressei várias vezes à capital. Em Junho de 1975, assumo a responsabilidade do MPLA e das FAPLA no Bié. Faço depois vai-e-vem em busca de meios bélicos a Luanda. Quando o Bié foi atacado e o Huambo tomado, vinha a Luanda buscar material bélico. Como vê o actual estado do país? O camarada João Lourenço encontrou uma Nação com dificuldades, num momento de grande crise financeira. A força, a vontade e a determinação com que ele começou a trilhar a direcção da Nação dão-me uma esperança muito grande de que as dificuldades vão ser vencidas. É um líder que quer, primeiro, a coragem de toda a gente, a honestidade de toda a gente e que as pessoas se sintam responsáveis pelas suas acções como angolanos. Vai conseguir corrigir o que está mal logo no primeiro mandato? Juntos com ele vamos conseguir corrigir o que está mal. Tudo tem sempre um fim. O que está mal terá também um fim. A escravatura teve o seu fim. Esta palavra de ordem é muito encorajadora para toda a gente. Cada angolano deve empenhar-se para corrigir o que está mal. Muitos antigos combatentes e veteranos da Pátria não têm uma vida digna. Não lhe dói o coração quando se encontra com antigos companheiros de arma que lamentam a triste vida que têm? É um problema que se arrasta há anos. Sempre houve reclamações. Não gostaria de dizer que o assunto vai ser resolvido de imediato. Se tivesse havido maior atenção, o ideal seria capacitar estes antigos combatentes com meios de sobrevivência, porque Angola tem muita terra arável. Se a agricultura é a base, eles teriam que trabalhar a terra. O Governo tem que fazer alguma coisa pelos antigos combatentes.

 

PERFIL

 

Rodeth Teresa Makina Gil nasceu no Cuito, Bié, mas passou os primeiros anos da sua infância na Lunda, onde o pai era pastor. Quando tinha 4 anos perdeu o pai e, dois anos depois, a mãe. Criada pelos tios, irmãos da mãe, Rodeth Gil cresceu na Missão de Lucinda, vila Teixeira de Sousa, actual Luau, província do Moxico, de onde partiu, aos 12 anos, para a guerrilha, juntando-se ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), em 1962. Aprendeu enfermagem na guerrilha, formação que a levou a fazer Medicina, após deixar o cargo de secretária de Estado da Assistência Social. Desistiu no segundo ano, por não ter conseguido encarar uma situação que foi "ver um cidadão morrer e não o poder salvar". Além do francês, fala inglês, língua aprendida no Metropole College, na Inglaterra, em cujo país se formou também em engenharia informática. Rodeth Gil é membro do Comité Central e da sua Comissão de Disciplina e Auditoria. Está, actualmente, ligada à Imprensa Nacional, onde exerce o cargo de administradora não executiva. A antiga secretária de Estado dos Assuntos Sociais trouxe ao mundo quatro filhos - três meninas e um rapaz. Uma das meninas faleceu há vinte anos.

 

segunda-feira, 20 de junho de 2016

BETO VAN-DÚNUEM: "Não sei se daqui a cem anos teremos um homem como Agostinho Neto"





ENTREVISTA PUBLICADA EM SETEMBRO DE 2004


NACIONALISTA BETO VAN-DÚNEM 

“Não sei se daqui a cem anos teremos 
um homem como Agostinho Neto  

Chegou a ser ministro do Comércio Interno, no tempo de Agostinho Neto. Dois anos depois da morte do primeiro Presidente de Angola, foi exonerado do cargo, em 1981. Desempregado, fez uma travessia no deserto, até que foi contratado, em 1983, por uma empresa estrangeira, para depois se transferir para a União, uma concessionária de automóveis, de que é o seu administrador. Diz-se frustrado e marginalizado pelo partido a que pertence, o MPLA, não só, segundo ele, por ser um indivíduo afecto ao doutor Agostinho Neto, como, também, pela frontalidade como encara a situação em que se encontra o país. Beto Van-Dúnem, o homem de quem se fala, recebeu, em sua casa, o jornalista Nhuca Júnior, para uma conversa distendida, solta e aberta sobre Agostinho Neto, sobre quem fez rasgados elogios. Inevitável foi a pergunta sobre a importação, por Angola, do vinho "Mosteiro", que chegou, como se dizia, a matar pessoas e à cuja aquisição está associada o seu nome, por ter sido ministro do Comércio Interno naquela altura. É que, no tempo em que o vinho veio, as pessoas não bebiam álcool há muito tempo", respondeu Beto Van-Dúnem. À leitura.
                   
Onde esteve quando recebeu a notícia da morte do Presidente Agostinho Neto?
Primeiramente, devo dizer que sinto uma tristeza, quando falo do doutor Agostinho Neto. Recebi a notícia da morte de Agostinho Neto na reunião do Conselho de Ministros. Estávamos todos à espera do início da reunião, quando o Presidente José Eduardo dos Santos, na altura vice-ministro do Plano, que estava a substituir o doutor Agostinho Neto, entrou para a sala para nos dar a triste notícia de que Agostinho Neto tinha falecido, no dia anterior, em Moscovo.

Quando chega o mês de Setembro, tem sempre um sentimento de nostalgia?
Sentimento de nostalgia, eu não tenho só no mês de Setembro. Tenho de Janeiro a Dezembro, porque aquilo que sinto – é a minha opinião pessoal – é que, se o Presidente Neto não tivesse morrido, não estaríamos a passar a desgraça que estamos a passar.

Refere-se aos grandes problemas socioeconómicos?
Exactamente. Uma vez, em conversa com um camarada sobre o doutor Agostinho Neto, eu disse que Neto devia morrer vinte anos depois da data em que morreu. Esse meu camarada disse-me: “estás completamente enganado. O doutor Agostinho Neto nunca devia ter morrido”. Estou inteiramente de acordo com ele.

Já que diz que se Agostinho Neto vivesse teríamos uma vida melhor, que estratégia teria para que o que diz fosse uma realidade, com todo este constrangimento da guerra por que passou o país?
Não tenho dúvidas absolutamente nenhumas acerca disso. Se o Presidente Neto estivesse vivo, não estaríamos a sofrer o que sofremos, nem indivíduos como eu estariam a viver uma frustração que hoje vivem.

O que o leva a ter tanta certeza de que estaríamos melhor se o Presidente Neto não morresse tão cedo?
Sabia o que ele pensava em relação ao país.

O que é que pensava?
Pensava que, depois da Independência Nacional, o povo angolano nunca devia pensar no tempo colonial. Devia sempre pensar que o tempo colonial já devia ter desaparecido há anos.

Está a querer dizer que o saudosismo pelo tempo colonial ainda reina na mente de muitos angolanos?
Não vou dizer nada que o meu amigo não saiba. Não vai muito tempo que ouvi, pela voz de Luanda, a 99.9 (Rádio Luanda), uma mulher a dizer: “porquê que não chamam outra vez os brancos para a gente viver como vivíamos no tempo colonial?”

A frontalidade com que fala não lhe tem provocado alguns dissabores no seio do MPLA, partido a que pertence?
Não vou dizer que me provoca dissabores. Mas a marginalização a que estou sujeito é resultado da posição que tenho, não só por ser um indivíduo afecto ao doutor Agostinho Neto, como, também, pela frontalidade como encaro a situação que estamos a viver. Não lutei para isso que está a acontecer no país.

Diz que se sente uma pessoa frustrada e, também, marginalizada. O que está na base da marginalização de que fala?
Não é na comunicação social que devo falar sobre isso. Devo falar sobre isso no dia em que o MPLA, o partido a que pertenço, chamar-me. Direi o porquê que estou marginalizado e afastado. 

Não tem sido um militante no activo?
Não, desde que Neto morreu. Estive mais um ano no Governo. Depois disso, fui retirado, em 1981.

A máxima de Agostinho Neto, segundo a qual “o mais importante é resolver os problemas do povo”, ainda é uma miragem?
Absolutamente. Conheço indivíduos, que trabalharam comigo no DOM – regional, no Comércio Interno e na UNTA, que, quando me procuram em casa, dizem que não comem desde anteontem. Há indivíduos que comem uma vez por dia, como os cães, e há outros que comem de dois em dois dias. Não era isso que Neto queria. Quando era ministro do Comércio Interno, a secretária de Neto, a camarada Guiomar, telefonou-me a dizer que o Presidente Neto mandou-me avisar que, amanhã, vamos seguir para Cabinda. Fomos a Cabinda e, quando regressámos, Neto mandou-me chamar, no dia seguinte, e disse-me assim: “viu Cabinda como está?” “Vi, sim, senhor”, respondi. “Então, vamos trabalhar para que o povo de Cabinda, quando for à fronteira e ver aquilo que está na fronteira com os congoleses, diga que quem vive mal são os congoleses, porque nós, cabindas, vivemos bem. Eles têm que ver que o que existe na fronteira não é nada em relação ao que existe em Cabinda. Camarada Beto Van-Dúnem, faça-me uma proposta em relação ao que pensa e ao que vai fazer em Cabinda”. Apresentei uma proposta.

Qual foi a proposta?
De como Cabinda devia funcionar em termos de bens alimentares e de bens industriais. O Presidente Neto concordou e Cabinda passou a ter coisas que, em Luanda, nem sequer existiam. A primeira aparelhagem que adquiri, comprei-a em Cabinda. O povo de Cabinda, no tempo de Neto, tinha tudo, não tinha necessidade de nada. 


Que grandes recordações guarda de Agostinho Neto?
Muitas. Foi um homem extremamente honesto, dedicado ao seu povo, simples, enfim, foi um homem que ouvia as pessoas. Aquilo que lhe diziam, ouvia. E, quando achava que o que se dizia era pertinente, considerava e punha, até, em prática. Não sei se, daqui a cem anos, vamos ter um homem como Agostinho Neto.

Qual foi a última vez que o viu?
A última vez que o vi foi quando estava a embarcar para a União Soviética. Embarcou e, dois dias depois, disseram-me que tinha morrido.

Antes da viagem, sabia do quadro clínico do Presidente Neto?
Não lhe posso dizer qual era o estado clínico do Presidente Neto, porque isso só o médico é que pode dizer. Agora, o que me admira é que, quando o camarada Iko Carreira me disse que o Presidente estava doente e que iria ser evacuado para a União Soviética, eu pensei que iria ver o Presidente numa maca, no aeroporto, ao embarcar. Quando chego ao aeroporto, e quando ficámos à espera que o Presidente chegasse, vi-o a vir com a sua comitiva. A porta do Mercedes abriu-se, o camarada Presidente desceu com a mão num dos bolsos e cumprimentou-nos, um por um. Recordo-me que me disse o seguinte quando chegou ao pé de mim: “quando voltar, temos que falar”. Eu já sabia o que é que tínhamos que falar, porque o camarada Iko Carreira tinha-me dito antes. Subiu às escadas do avião, sem agarrar no corrimão, de mão no bolso, sozinho, para dois dias depois nos dizerem que morreu. Não acredito nessa morte! Não acredito!

O que é que Neto queria transmitir-lhe quando voltasse da viagem?
Que eu sairia do Ministério do Comércio Interno, porque dizia que o Comércio já estava a funcionar. Colocar-me-ia num outro ministério. Qual, não lhe posso dizer, porque o Iko não me disse.

Admite o que sempre se especulou de que os soviéticos terão matado o Presidente Neto?
É um bocado arriscado um indivíduo fazer uma afirmação dessa natureza. Mas aquilo que eu penso – não aquilo que eu digo – é exactamente isso.

As mortes em massa, que ocorreram na sequência do 27 de Maio, não terão beliscado, até hoje, a imagem do Presidente Agostinho Neto?
Há muitas pessoas que especulam à volta disso. Sinto que há pessoas que tentam denegrir a personalidade do Presidente Neto, com o 77. Mas aquilo que aconteceu, em 1977, não foi determinado por Neto. Não confundam aquilo que ele disse, de que não haveria perdão para ninguém, com aquilo que se fez. Ele não tem absolutamente nada a ver com aquilo.

Os excessos não podem ser atribuídos a Neto, que, quando soube da dimensão do problema, acabou por extinguir a DISA, antes de morrer. É o que está a querer dizer?
Exactamente. A direcção da DISA não teve o controlo sobre os homens que tinha. Muitos elementos da DISA – eu tenho provas e conhecimento de muitos casos desses – tomaram posições e mataram indivíduos sem o conhecimento da direcção e sem a autorização de ninguém. Procuraram os seus inimigos, procuraram os indivíduos com quem não se davam, procuraram sei lá o quê, para fazer toda a espécie de atrocidades.

O que é que o Estado e, obviamente, o MPLA devem fazer para que se enalteça cada vez mais a figura de Neto, que só é relembrada, sobretudo, em Setembro de cada ano?
É divulgar o que é que foi Agostinho Neto.

Quando ouço o senhor, a leitura que faço é de que talvez exista algo em si, como recalcamento e, até, algum sentimento de orfandade.
Estou perfeitamente a entender aquilo que o meu amigo me está a dizer. Sou um indivíduo que foi afastado pelo partido e, até hoje, luto pela minha sobrevivência, o que não é correcto. Digo que não é correcto porque, quando Agostinho Neto chegou a Angola, uma das primeiras coisas que perguntou ao camarada Lúcio Lara foi sobre o que era feito dos homens do “Processo 50”. Convocou uma reunião com os homens do “Processo 50”, encontro realizado no Cazenga, dias depois de ele ter chegado a Luanda. Ele iniciou a reunião com essas palavras: “vocês foram os homens que agarram o touro pelos cornos e nós, lá fora, limitamo-nos a puxá-lo pelo rabo. Vocês merecem o respeito, a consideração e a admiração de todo o povo, principalmente da juventude angolana”.

Não disse, até agora, o motivo do seu afastamento do Governo. Não quer revelar?
Não sei. Talvez por ser um indivíduo incondicionalmente admirador do Neto. Sobre Neto, teria muito que dizer, teria muito que falar, porque era uma figura de África, uma figura da dimensão de Nelson Mandela. Tenho por ele uma grande admiração, porque conheci-o muito de perto.

Como é que o conheceu?
Conheci-o, porque Neto morava muito próximo da minha casa, a 50 ou 60 metros. Era amigo da minha família. Quando eu era garoto, via-o, quando passava por casa, em conversa com a minha mãe, que tinha a idade dele. Quando regressou a Luanda, a estima que ele tinha por mim, e pelos outros camaradas, era por ser membro do “Processo 50”.

A última viagem de Agostinho Neto para a União Soviética, por razões de saúde, foi resultado de uma decisão do Bureau Político do MPLA ou foi uma decisão pessoal de Neto?
Segundo o que eu ouvi – aliás, o IKo Carreira foi um dos que me disseram – a viagem de Agostinho Neto, para a União Soviética, para tratamento médico, foi uma decisão do Bureau Político.

Não se ventilou a possibilidade de Neto ir para um outro país?
Um embaixador nosso, que estava na altura em França, queria que ele fosse para um hospital americano, localizado em França.

Até hoje, não temos, em livro, os discursos completos de Agostinho Neto, cujo material devia estar já, também, na minha opinião, em CD. Não é algo em que já se devia pensar?
Aquilo que Agostinho Neto foi, para este país, devia ser lecionado nas escolas. Da mesma maneira que, quando entrei para a primeira classe, no tempo colonial, falávamos sobre Salazar, eu penso que, nas escolas, devia-se falar de Agostinho Neto. A juventude devia saber quem foi Agostinho Neto.

Tem ido ao Mausoléu?
Tenho ido.

Só vai em Setembro por altura da “Semana do Herói Nacional”?
Vou sempre ao Mausoléu e fico triste por ainda estar na situação em que está. Fui para lá, há dias, com um amigo, e estivemos parados, no Mausoléu, durante algum tempo. Pelo tempo que aquilo foi edificado, já devia ser um Mausoléu acabado.

Quantas vezes vai, por ano, ao Mausoléu?
Passo por lá muitas vezes. Mas vamos, oficialmente, para lá nos dias 29 de Março, dia do “Processo 50”, e 17 de Setembro, dia em que se comemora o aniversário natalício de Neto.

Defende que os restos mortais do Presidente Neto sejam enterrados?
Isto é um problema que não sou eu que tenho que defender. É um problema familiar, penso eu. Muito embora fique com alguma tristeza, quando tenho que falar sobre Agostinho Neto, a coisa que me dá alento é que, quando vou ao Mausoléu, vejo Agostinho Neto. Não o vejo como uma pessoa morta, vejo-o como uma pessoa viva e isso conforta-me, consola-me, por tudo aquilo que senti e ainda sinto por ele e por aquilo que foi em vida.

O senhor afirma que, caso Agostinho Neto vivesse, as condições de vida dos angolanos não seriam as que temos hoje em dia. Quando faz esta afirmação, não estará a criticar, explicitamente, a gestão do Presidente José Eduardo dos Santos?
Não estou a criticar ninguém. Quem sou eu para criticar? Eu só digo isso, porque, quando estava no Comércio Interno, sempre que Neto estivesse comigo, dizia-me: “camarada Beto Van-Dúnem, você tem todo o meu apoio. Não faça com que este povo pense que antes da independência é que era bom. O povo deve pensar que a independência já devia ter vindo há mais tempo. É preciso alimentação para eles. Ponha-me os hotéis a funcionar, ponha-me as boîtes a funcionar, ponha tudo a funcionar. Vamos dar ao nosso povo aquilo que pensávamos dar quando estávamos a lutar”. Era o que ele me dizia. É dentro dessa ideia, que eu digo que, se ele estivesse vivo, as coisas não estariam como estão.

Conte-nos mais alguma coisa.
Há conversas que ele teve comigo e com o Mendes de Carvalho – normalmente estávamos sempre os dois – que me impressionaram. No DOM – regional, não tínhamos equipamentos. Ele foi lá uma vez e a população queria vê-lo e ouvi-lo. Tínhamos um megafone pequenino, emprestado pelo DOM – nacional, cujo som mal se ouvia. Dois dias depois, mandou-me chamar e perguntou-me como é que fazíamos os comícios. Pediu-me para fazer uma relação daquilo que era preciso e mandou-me entregar à camarada Guiomar, a sua secretária. Passado uma ou duas semanas, a camarada Guiomar, por telefone, disse-me que o Presidente mandou-me chamar. Fui ao Palácio, e, quando lá cheguei, Agostinho Neto deu-me um salvo-conduto e um maço com notas de dólares para viajar para Portugal, para a compra de produtos, como megafones, que não haviam no país. Depois de receber o dinheiro, ele olhou para mim e disse: “camarada Beto Van-Dúnem, não se esqueça de me trazer as facturas de tudo o que comprar e as do hotel onde estiver alojado”. Fiquei a olhar para ele um pouco meio apatetado. Ele, como talvez tivesse notado em mim alguma coisa, disse: “olhe, quando estou a pedir isso, não estou a pedir por desconfiar de si, estou a pedir porque eu tenho que apresentar contas”. Talvez por ingenuidade ou mesmo por ignorância – era ainda novo e não conhecia as engrenagens governamentais -, perguntei: “então,  o camarada Presidente também apresenta contas?” Ele olhou para mim, seriamente, e disse: “o que é que o camarada Beto Van-Dúnem pensa que sou? Eu não sou o dono de Angola, sou o Presidente da República Popular de Angola e tenho que dar satisfações a este povo daquilo que faço. O camarada que traga tudo para eu depois ir à Contabilidade entregar o justificativo do dinheiro que pedi”. Passados anos, quando me chama para dizer que eu tinha que ir para o Comércio Interno, depois da conversa que mantivemos, levantou-se e acompanhou-me até à porta. Quando chegou à porta, pôs uma mão sobre o meu ombro e disse: “o camarada vai para o Comércio Interno, mas vai prestar contas, porque o camarada não é o dono do Comércio Interno. É um servidor público e, como servidor do Estado, tem que dar satisfações ao povo a quem você serve”.

E a “estória” do televisor?
O televisor é uma estória que eu já contei várias vezes. A secretária de Neto telefonou-me, porque o televisor dele tinha avariado. Ele pediu para ligarem para mim, para ver se lhe mandavam outro televisor. Foi posto um televisor novo, porque o que lá se encontrava estava completamente queimado. Dois dias depois, a secretária telefona-me a dizer que o camarada Presidente mandou perguntar quanto custou o televisor. Eu disse para a secretária que era uma oferta da empresa. Numa reunião do Conselho de Ministros, a secretária disse-me que o Presidente me estava a chamar. Entrei e, já sentado, no seu gabinete, o Neto olha para mim e diz: “é assim que os camaradas querem governar este país?” Só porque uma pessoa é Presidente da República, compra uma coisa e não paga?” Quer dizer, eu, amanhã, se for a uma “stand” qualquer de automóveis, chego lá, tiro um automóvel e não pago? Vou-me embora sem pagar, porque sou o Presidente da República? Diga-me quanto é que custou o televisor, porque se não é para pagar, pode mandar alguém buscar o aparelho”.

Qual foi a sua reacção?
Saí de lá meio envergonhado. Quando cheguei, no dia seguinte, ao Ministério, disse para passarem a factura e telefonei para o Futungo, para darem autorização para a entrada do homem que levava a factura. A camarada Guiomar, à tarde, telefonou-me e disse-me o seguinte: “camarada Beto Van-Dúnem, o camarada Presidente diz para não pôr na factura Presidência da República, ponha em nome de Agostinho Neto, porque o televisor é dele, é de quem vai pagar, com o dinheiro dele. E não se esqueça de pôr na factura PAGO”. O Neto era um homem honesto, não vivia deste país e é por isso que morreu pobre.

Durante todos esses anos, nunca se especulou, para bem da sua imagem, que é, na verdade impoluta, sobre a possibilidade de ter deixado contas no estrangeiro?
Nada, nada. Não existe nada. O Neto morreu com a roupa que tinha no corpo. Não tinha dinheiro.

Quando se fala do senhor Beto Van-Dúnem associa-se sempre o seu nome ao vinho “Mosteiro”, comprado por Angola ao Brasil, por altura em que era ministro do Comércio Interno. Esse vinho, ao que parece, chegou a matar pessoas em Angola. Quer comentar?
Eu pedi a determinadas pessoas para provarem o vinho, para ver se tinha ou não qualidade. Eles viram que o vinho tinha qualidade. Agora, o que aconteceu – e isso poucas pessoas dizem- porque o que lhes interessava era denegrir o meu nome – é que, no tempo em que o vinho veio, as pessoas não bebiam álcool há muito tempo. Vou contar-lhe dois casos concretos: eu fui ao Porto de Luanda para ver o desembarque de contentores de vinho. Estava no Porto, ao lado do barco, e vi na lona do guindaste um polícia, que se pôs lá no porão para tomar conta dos garrafões de vinho, para ninguém abrir. Ele veio completamente bêbado. Foi chamada uma ambulância, que o levou ao hospital, onde acabou por morrer. Na Martal, para onde fui, no quadro do ciclo de visitas que fazia às lojas, estava um homem deitado no chão, inanimado, quase que em coma. Umas mulheres que estavam lá disseram-me que ele havia comprado um garrafão de vinho e, quando chegou cá fora, disse: “agora vamos ver se entre tu e eu quem é que fica!” Abriu o garrafão, levou-o à boca e caiu para um lado e o garrafão para o outro.