ENTREVISTA PUBLICADA EM SETEMBRO DE 2004
NACIONALISTA BETO VAN-DÚNEM
“Não sei se daqui a cem anos teremos
um homem como Agostinho Neto”
um homem como Agostinho Neto”
Chegou a ser ministro do Comércio Interno, no tempo de Agostinho Neto. Dois anos depois da morte do primeiro Presidente de Angola, foi exonerado do cargo, em 1981. Desempregado, fez uma travessia no deserto, até que foi contratado, em 1983, por uma empresa estrangeira, para depois se transferir para a União, uma concessionária de automóveis, de que é o seu administrador. Diz-se frustrado e marginalizado pelo partido a que pertence, o MPLA, não só, segundo ele, por ser um indivíduo afecto ao doutor Agostinho Neto, como, também, pela frontalidade como encara a situação em que se encontra o país. Beto Van-Dúnem, o homem de quem se fala, recebeu, em sua casa, o jornalista Nhuca Júnior, para uma conversa distendida, solta e aberta sobre Agostinho Neto, sobre quem fez rasgados elogios. Inevitável foi a pergunta sobre a importação, por Angola, do vinho "Mosteiro", que chegou, como se dizia, a matar pessoas e à cuja aquisição está associada o seu nome, por ter sido ministro do Comércio Interno naquela altura. É que, no tempo em que o vinho veio, as pessoas não bebiam álcool há muito tempo", respondeu Beto Van-Dúnem. À leitura.
Onde esteve quando recebeu a notícia da morte do Presidente Agostinho Neto?
Primeiramente, devo dizer que
sinto uma tristeza, quando falo do doutor Agostinho Neto. Recebi a notícia da
morte de Agostinho Neto na reunião do Conselho de Ministros. Estávamos todos à
espera do início da reunião, quando o Presidente José Eduardo dos Santos, na
altura vice-ministro do Plano, que estava a substituir o doutor Agostinho Neto,
entrou para a sala para nos dar a triste notícia de que Agostinho Neto tinha
falecido, no dia anterior, em Moscovo.
Quando
chega o mês de Setembro, tem sempre um sentimento de nostalgia?
Sentimento de nostalgia, eu
não tenho só no mês de Setembro. Tenho de Janeiro a Dezembro, porque aquilo que
sinto – é a minha opinião pessoal – é que, se o Presidente Neto não tivesse
morrido, não estaríamos a passar a desgraça que estamos a passar.
Refere-se
aos grandes problemas socioeconómicos?
Exactamente. Uma vez, em
conversa com um camarada sobre o doutor Agostinho Neto, eu disse que Neto devia
morrer vinte anos depois da data em que morreu. Esse meu camarada disse-me:
“estás completamente enganado. O doutor Agostinho Neto nunca devia ter
morrido”. Estou inteiramente de acordo com ele.
Já que diz que se Agostinho Neto vivesse teríamos uma vida melhor, que
estratégia teria para que o que diz fosse uma realidade, com todo este constrangimento
da guerra por que passou o país?
Não tenho dúvidas
absolutamente nenhumas acerca disso. Se o Presidente Neto estivesse vivo, não
estaríamos a sofrer o que sofremos, nem indivíduos como eu estariam a viver uma
frustração que hoje vivem.
O que o leva a ter tanta certeza de que estaríamos melhor se o Presidente Neto não
morresse tão cedo?
Sabia o que ele pensava em
relação ao país.
O
que é que pensava?
Pensava que, depois da Independência Nacional, o povo angolano nunca devia pensar no tempo colonial. Devia
sempre pensar que o tempo colonial já devia ter desaparecido há anos.
Está
a querer dizer que o saudosismo pelo tempo colonial ainda reina na mente de
muitos angolanos?
Não vou dizer nada que o meu
amigo não saiba. Não vai muito tempo que ouvi, pela voz de Luanda, a 99.9
(Rádio Luanda), uma mulher a dizer: “porquê que não chamam outra vez os brancos
para a gente viver como vivíamos no tempo colonial?”
A
frontalidade com que fala não lhe tem provocado alguns dissabores no seio do
MPLA, partido a que pertence?
Não vou dizer que me provoca
dissabores. Mas a marginalização a que estou sujeito é resultado da posição que
tenho, não só por ser um indivíduo afecto ao doutor Agostinho Neto, como,
também, pela frontalidade como encaro a situação que estamos a viver. Não lutei
para isso que está a acontecer no país.
Diz
que se sente uma pessoa frustrada e, também, marginalizada. O que está na base
da marginalização de que fala?
Não é na comunicação social
que devo falar sobre isso. Devo falar sobre isso no dia em que o MPLA, o
partido a que pertenço, chamar-me. Direi o porquê que estou marginalizado e
afastado.
Não
tem sido um militante no activo?
Não, desde que Neto morreu.
Estive mais um ano no Governo. Depois disso, fui retirado, em 1981.
A
máxima de Agostinho Neto, segundo a qual “o mais importante é resolver os
problemas do povo”, ainda é uma miragem?
Absolutamente. Conheço
indivíduos, que trabalharam comigo no DOM – regional, no Comércio Interno e na
UNTA, que, quando me procuram em casa, dizem que não comem desde anteontem. Há
indivíduos que comem uma vez por dia, como os cães, e há outros que comem de
dois em dois dias. Não era isso que Neto queria. Quando era ministro do
Comércio Interno, a secretária de Neto, a camarada Guiomar, telefonou-me a
dizer que o Presidente Neto mandou-me avisar que, amanhã, vamos seguir para
Cabinda. Fomos a Cabinda e, quando regressámos, Neto mandou-me chamar, no dia
seguinte, e disse-me assim: “viu Cabinda como está?” “Vi, sim, senhor”,
respondi. “Então, vamos trabalhar para que o povo de Cabinda, quando for à
fronteira e ver aquilo que está na fronteira com os congoleses, diga que quem
vive mal são os congoleses, porque nós, cabindas, vivemos bem. Eles têm que ver
que o que existe na fronteira não é nada em relação ao que existe em Cabinda.
Camarada Beto Van-Dúnem, faça-me uma proposta em relação ao que pensa e ao que
vai fazer em Cabinda”. Apresentei uma proposta.
Qual
foi a proposta?
De como Cabinda devia
funcionar em termos de bens alimentares e de bens industriais. O Presidente
Neto concordou e Cabinda passou a ter coisas que, em Luanda, nem sequer
existiam. A primeira aparelhagem que adquiri, comprei-a em Cabinda. O povo de
Cabinda, no tempo de Neto, tinha tudo, não tinha necessidade de nada.
Que
grandes recordações guarda de Agostinho Neto?
Muitas. Foi um homem
extremamente honesto, dedicado ao seu povo, simples, enfim, foi um homem que
ouvia as pessoas. Aquilo que lhe diziam, ouvia. E, quando achava que o que se
dizia era pertinente, considerava e punha, até, em prática. Não sei se, daqui a
cem anos, vamos ter um homem como Agostinho Neto.
Qual
foi a última vez que o viu?
A última vez que o vi foi
quando estava a embarcar para a União Soviética. Embarcou e, dois dias depois,
disseram-me que tinha morrido.
Antes
da viagem, sabia do quadro clínico do Presidente Neto?
Não lhe posso dizer qual era
o estado clínico do Presidente Neto, porque isso só o médico é que pode dizer.
Agora, o que me admira é que, quando o camarada Iko Carreira me disse que o
Presidente estava doente e que iria ser evacuado para a União Soviética, eu
pensei que iria ver o Presidente numa maca, no aeroporto, ao embarcar. Quando
chego ao aeroporto, e quando ficámos à espera que o Presidente chegasse, vi-o a
vir com a sua comitiva. A porta do Mercedes abriu-se, o camarada Presidente
desceu com a mão num dos bolsos e cumprimentou-nos, um por um. Recordo-me que
me disse o seguinte quando chegou ao pé de mim: “quando voltar, temos que
falar”. Eu já sabia o que é que tínhamos que falar, porque o camarada Iko
Carreira tinha-me dito antes. Subiu às escadas do avião, sem agarrar no
corrimão, de mão no bolso, sozinho, para dois dias depois nos dizerem que
morreu. Não acredito nessa morte! Não acredito!
O
que é que Neto queria transmitir-lhe quando voltasse da viagem?
Que eu sairia do Ministério
do Comércio Interno, porque dizia que o Comércio já estava a funcionar.
Colocar-me-ia num outro ministério. Qual, não lhe posso dizer, porque o Iko não
me disse.
Admite
o que sempre se especulou de que os soviéticos terão matado o Presidente Neto?
É um bocado arriscado um
indivíduo fazer uma afirmação dessa natureza. Mas aquilo que eu penso – não
aquilo que eu digo – é exactamente isso.
As mortes em massa, que
ocorreram na sequência do 27 de Maio, não terão beliscado, até hoje, a imagem
do Presidente Agostinho Neto?
Há muitas pessoas que
especulam à volta disso. Sinto que há pessoas que tentam denegrir a
personalidade do Presidente Neto, com o 77. Mas aquilo que aconteceu, em 1977,
não foi determinado por Neto. Não confundam aquilo que ele disse, de que não
haveria perdão para ninguém, com aquilo que se fez. Ele não tem absolutamente nada
a ver com aquilo.
Os
excessos não podem ser atribuídos a Neto, que, quando soube da dimensão do
problema, acabou por extinguir a DISA, antes de morrer. É o que está a querer
dizer?
Exactamente. A direcção da
DISA não teve o controlo sobre os homens que tinha. Muitos elementos da DISA –
eu tenho provas e conhecimento de muitos casos desses – tomaram posições e
mataram indivíduos sem o conhecimento da direcção e sem a autorização de
ninguém. Procuraram os seus inimigos, procuraram os indivíduos com quem não se
davam, procuraram sei lá o quê, para fazer toda a espécie de atrocidades.
O
que é que o Estado e, obviamente, o MPLA devem fazer para que se enalteça cada
vez mais a figura de Neto, que só é relembrada, sobretudo, em Setembro de cada
ano?
É divulgar o que é que foi
Agostinho Neto.
Quando
ouço o senhor, a leitura que faço é de que talvez exista algo em si, como
recalcamento e, até, algum sentimento de orfandade.
Estou perfeitamente a
entender aquilo que o meu amigo me está a dizer. Sou um indivíduo que foi
afastado pelo partido e, até hoje, luto pela minha sobrevivência, o que não é
correcto. Digo que não é correcto porque, quando Agostinho Neto chegou a
Angola, uma das primeiras coisas que perguntou ao camarada Lúcio Lara foi sobre
o que era feito dos homens do “Processo 50”. Convocou uma reunião com os homens
do “Processo 50”, encontro realizado no Cazenga, dias depois de ele ter chegado
a Luanda. Ele iniciou a reunião com essas palavras: “vocês foram os homens que
agarram o touro pelos cornos e nós, lá fora, limitamo-nos a puxá-lo pelo rabo.
Vocês merecem o respeito, a consideração e a admiração de todo o povo,
principalmente da juventude angolana”.
Não
disse, até agora, o motivo do seu afastamento do Governo. Não quer revelar?
Não sei. Talvez por ser um
indivíduo incondicionalmente admirador do Neto. Sobre Neto, teria muito que
dizer, teria muito que falar, porque era uma figura de África, uma figura da
dimensão de Nelson Mandela. Tenho por ele uma grande admiração, porque
conheci-o muito de perto.
Como
é que o conheceu?
Conheci-o, porque Neto
morava muito próximo da minha casa, a 50 ou 60 metros. Era amigo da minha
família. Quando eu era garoto, via-o, quando passava por casa, em conversa com
a minha mãe, que tinha a idade dele. Quando regressou a Luanda, a estima que
ele tinha por mim, e pelos outros camaradas, era por ser membro do “Processo
50”.
A
última viagem de Agostinho Neto para a União Soviética, por razões de saúde,
foi resultado de uma decisão do Bureau Político do MPLA ou foi uma decisão
pessoal de Neto?
Segundo o que eu ouvi –
aliás, o IKo Carreira foi um dos que me disseram – a viagem de Agostinho Neto,
para a União Soviética, para tratamento médico, foi uma decisão do Bureau
Político.
Não
se ventilou a possibilidade de Neto ir para um outro país?
Um embaixador nosso, que
estava na altura em França, queria que ele fosse para um hospital americano,
localizado em França.
Até
hoje, não temos, em livro, os discursos completos de Agostinho Neto, cujo
material devia estar já, também, na minha opinião, em CD. Não é algo em que já
se devia pensar?
Aquilo que Agostinho Neto
foi, para este país, devia ser lecionado nas escolas. Da mesma maneira que,
quando entrei para a primeira classe, no tempo colonial, falávamos sobre
Salazar, eu penso que, nas escolas, devia-se falar de Agostinho Neto. A
juventude devia saber quem foi Agostinho Neto.
Tem
ido ao Mausoléu?
Tenho ido.
Só
vai em Setembro por altura da “Semana do Herói Nacional”?
Vou sempre ao Mausoléu e
fico triste por ainda estar na situação em que está. Fui para lá, há dias, com
um amigo, e estivemos parados, no Mausoléu, durante algum tempo. Pelo tempo que
aquilo foi edificado, já devia ser um Mausoléu acabado.
Quantas
vezes vai, por ano, ao Mausoléu?
Passo por lá muitas vezes.
Mas vamos, oficialmente, para lá nos dias 29 de Março, dia do “Processo 50”, e
17 de Setembro, dia em que se comemora o aniversário natalício de Neto.
Defende
que os restos mortais do Presidente Neto sejam enterrados?
Isto é um problema que não
sou eu que tenho que defender. É um problema familiar, penso eu. Muito embora fique
com alguma tristeza, quando tenho que falar sobre Agostinho Neto, a coisa que
me dá alento é que, quando vou ao Mausoléu, vejo Agostinho Neto. Não o vejo
como uma pessoa morta, vejo-o como uma pessoa viva e isso conforta-me,
consola-me, por tudo aquilo que senti e ainda sinto por ele e por aquilo que
foi em vida.
O
senhor afirma que, caso Agostinho Neto vivesse, as condições de vida dos
angolanos não seriam as que temos hoje em dia. Quando faz esta afirmação, não
estará a criticar, explicitamente, a gestão do Presidente José Eduardo dos
Santos?
Não estou a criticar
ninguém. Quem sou eu para criticar? Eu só digo isso, porque, quando estava no
Comércio Interno, sempre que Neto estivesse comigo, dizia-me: “camarada Beto
Van-Dúnem, você tem todo o meu apoio. Não faça com que este povo pense que
antes da independência é que era bom. O povo deve pensar que a independência já
devia ter vindo há mais tempo. É preciso alimentação para eles. Ponha-me os
hotéis a funcionar, ponha-me as boîtes a funcionar, ponha tudo a funcionar.
Vamos dar ao nosso povo aquilo que pensávamos dar quando estávamos a lutar”. Era
o que ele me dizia. É dentro dessa ideia, que eu digo que, se ele estivesse
vivo, as coisas não estariam como estão.
Conte-nos
mais alguma coisa.
Há conversas que ele teve
comigo e com o Mendes de Carvalho – normalmente estávamos sempre os dois – que
me impressionaram. No DOM – regional, não tínhamos equipamentos. Ele foi lá uma
vez e a população queria vê-lo e ouvi-lo. Tínhamos um megafone pequenino,
emprestado pelo DOM – nacional, cujo som mal se ouvia. Dois dias depois,
mandou-me chamar e perguntou-me como é que fazíamos os comícios. Pediu-me para
fazer uma relação daquilo que era preciso e mandou-me entregar à camarada
Guiomar, a sua secretária. Passado uma ou duas semanas, a camarada Guiomar, por
telefone, disse-me que o Presidente mandou-me chamar. Fui ao Palácio, e, quando
lá cheguei, Agostinho Neto deu-me um salvo-conduto e um maço com notas de
dólares para viajar para Portugal, para a compra de produtos, como megafones,
que não haviam no país. Depois de receber o dinheiro, ele olhou para mim e
disse: “camarada Beto Van-Dúnem, não se esqueça de me trazer as facturas de
tudo o que comprar e as do hotel onde estiver alojado”. Fiquei a olhar para ele
um pouco meio apatetado. Ele, como talvez tivesse notado em mim alguma coisa,
disse: “olhe, quando estou a pedir isso, não estou a pedir por desconfiar de
si, estou a pedir porque eu tenho que apresentar contas”. Talvez por
ingenuidade ou mesmo por ignorância – era ainda novo e não conhecia as
engrenagens governamentais -, perguntei: “então, o camarada Presidente também apresenta
contas?” Ele olhou para mim, seriamente, e disse: “o que é que o camarada Beto
Van-Dúnem pensa que sou? Eu não sou o dono de Angola, sou o Presidente da
República Popular de Angola e tenho que dar satisfações a este povo daquilo que
faço. O camarada que traga tudo para eu depois ir à Contabilidade entregar o
justificativo do dinheiro que pedi”. Passados anos, quando me chama para dizer
que eu tinha que ir para o Comércio Interno, depois da conversa que mantivemos,
levantou-se e acompanhou-me até à porta. Quando chegou à porta, pôs uma mão
sobre o meu ombro e disse: “o camarada vai para o Comércio Interno, mas vai
prestar contas, porque o camarada não é o dono do Comércio Interno. É um
servidor público e, como servidor do Estado, tem que dar satisfações ao povo a
quem você serve”.
E
a “estória” do televisor?
O televisor é uma estória
que eu já contei várias vezes. A secretária de Neto telefonou-me, porque o
televisor dele tinha avariado. Ele pediu para ligarem para mim, para ver se lhe
mandavam outro televisor. Foi posto um televisor novo, porque o que lá se
encontrava estava completamente queimado. Dois dias depois, a secretária telefona-me
a dizer que o camarada Presidente mandou perguntar quanto custou o televisor. Eu
disse para a secretária que era uma oferta da empresa. Numa reunião do Conselho
de Ministros, a secretária disse-me que o Presidente me estava a chamar. Entrei
e, já sentado, no seu gabinete, o Neto olha para mim e diz: “é assim que os
camaradas querem governar este país?” Só porque uma pessoa é Presidente da
República, compra uma coisa e não paga?” Quer dizer, eu, amanhã, se for a uma
“stand” qualquer de automóveis, chego lá, tiro um automóvel e não pago? Vou-me
embora sem pagar, porque sou o Presidente da República? Diga-me quanto é que
custou o televisor, porque se não é para pagar, pode mandar alguém buscar o
aparelho”.
Qual
foi a sua reacção?
Saí de lá meio envergonhado.
Quando cheguei, no dia seguinte, ao Ministério, disse para passarem a factura e
telefonei para o Futungo, para darem autorização para a entrada do homem que
levava a factura. A camarada Guiomar, à tarde, telefonou-me e disse-me o
seguinte: “camarada Beto Van-Dúnem, o camarada Presidente diz para não pôr na
factura Presidência da República, ponha em nome de Agostinho Neto, porque o
televisor é dele, é de quem vai pagar, com o dinheiro dele. E não se esqueça de
pôr na factura PAGO”. O Neto era um homem honesto, não vivia deste país e é por
isso que morreu pobre.
Durante
todos esses anos, nunca se especulou, para bem da sua imagem, que é, na verdade
impoluta, sobre a possibilidade de ter deixado contas no estrangeiro?
Nada, nada. Não existe nada.
O Neto morreu com a roupa que tinha no corpo. Não tinha dinheiro.
Quando
se fala do senhor Beto Van-Dúnem associa-se sempre o seu nome ao vinho
“Mosteiro”, comprado por Angola ao Brasil, por altura em que era ministro do
Comércio Interno. Esse vinho, ao que parece, chegou a matar pessoas em Angola.
Quer comentar?
Eu pedi a determinadas
pessoas para provarem o vinho, para ver se tinha ou não qualidade. Eles viram
que o vinho tinha qualidade. Agora, o que aconteceu – e isso poucas pessoas
dizem- porque o que lhes interessava era denegrir o meu nome – é que, no tempo
em que o vinho veio, as pessoas não bebiam álcool há muito tempo. Vou
contar-lhe dois casos concretos: eu fui ao Porto de Luanda para ver o
desembarque de contentores de vinho. Estava no Porto, ao lado do barco, e vi na
lona do guindaste um polícia, que se pôs lá no porão para tomar conta dos
garrafões de vinho, para ninguém abrir. Ele veio completamente bêbado. Foi
chamada uma ambulância, que o levou ao hospital, onde acabou por morrer. Na
Martal, para onde fui, no quadro do ciclo de visitas que fazia às lojas, estava
um homem deitado no chão, inanimado, quase que em coma. Umas mulheres que
estavam lá disseram-me que ele havia comprado um garrafão de vinho e, quando
chegou cá fora, disse: “agora vamos ver se entre tu e eu quem é que fica!”
Abriu o garrafão, levou-o à boca e caiu para um lado e o garrafão para o outro.