segunda-feira, 20 de junho de 2016

BETO VAN-DÚNUEM: "Não sei se daqui a cem anos teremos um homem como Agostinho Neto"





ENTREVISTA PUBLICADA EM SETEMBRO DE 2004


NACIONALISTA BETO VAN-DÚNEM 

“Não sei se daqui a cem anos teremos 
um homem como Agostinho Neto  

Chegou a ser ministro do Comércio Interno, no tempo de Agostinho Neto. Dois anos depois da morte do primeiro Presidente de Angola, foi exonerado do cargo, em 1981. Desempregado, fez uma travessia no deserto, até que foi contratado, em 1983, por uma empresa estrangeira, para depois se transferir para a União, uma concessionária de automóveis, de que é o seu administrador. Diz-se frustrado e marginalizado pelo partido a que pertence, o MPLA, não só, segundo ele, por ser um indivíduo afecto ao doutor Agostinho Neto, como, também, pela frontalidade como encara a situação em que se encontra o país. Beto Van-Dúnem, o homem de quem se fala, recebeu, em sua casa, o jornalista Nhuca Júnior, para uma conversa distendida, solta e aberta sobre Agostinho Neto, sobre quem fez rasgados elogios. Inevitável foi a pergunta sobre a importação, por Angola, do vinho "Mosteiro", que chegou, como se dizia, a matar pessoas e à cuja aquisição está associada o seu nome, por ter sido ministro do Comércio Interno naquela altura. É que, no tempo em que o vinho veio, as pessoas não bebiam álcool há muito tempo", respondeu Beto Van-Dúnem. À leitura.
                   
Onde esteve quando recebeu a notícia da morte do Presidente Agostinho Neto?
Primeiramente, devo dizer que sinto uma tristeza, quando falo do doutor Agostinho Neto. Recebi a notícia da morte de Agostinho Neto na reunião do Conselho de Ministros. Estávamos todos à espera do início da reunião, quando o Presidente José Eduardo dos Santos, na altura vice-ministro do Plano, que estava a substituir o doutor Agostinho Neto, entrou para a sala para nos dar a triste notícia de que Agostinho Neto tinha falecido, no dia anterior, em Moscovo.

Quando chega o mês de Setembro, tem sempre um sentimento de nostalgia?
Sentimento de nostalgia, eu não tenho só no mês de Setembro. Tenho de Janeiro a Dezembro, porque aquilo que sinto – é a minha opinião pessoal – é que, se o Presidente Neto não tivesse morrido, não estaríamos a passar a desgraça que estamos a passar.

Refere-se aos grandes problemas socioeconómicos?
Exactamente. Uma vez, em conversa com um camarada sobre o doutor Agostinho Neto, eu disse que Neto devia morrer vinte anos depois da data em que morreu. Esse meu camarada disse-me: “estás completamente enganado. O doutor Agostinho Neto nunca devia ter morrido”. Estou inteiramente de acordo com ele.

Já que diz que se Agostinho Neto vivesse teríamos uma vida melhor, que estratégia teria para que o que diz fosse uma realidade, com todo este constrangimento da guerra por que passou o país?
Não tenho dúvidas absolutamente nenhumas acerca disso. Se o Presidente Neto estivesse vivo, não estaríamos a sofrer o que sofremos, nem indivíduos como eu estariam a viver uma frustração que hoje vivem.

O que o leva a ter tanta certeza de que estaríamos melhor se o Presidente Neto não morresse tão cedo?
Sabia o que ele pensava em relação ao país.

O que é que pensava?
Pensava que, depois da Independência Nacional, o povo angolano nunca devia pensar no tempo colonial. Devia sempre pensar que o tempo colonial já devia ter desaparecido há anos.

Está a querer dizer que o saudosismo pelo tempo colonial ainda reina na mente de muitos angolanos?
Não vou dizer nada que o meu amigo não saiba. Não vai muito tempo que ouvi, pela voz de Luanda, a 99.9 (Rádio Luanda), uma mulher a dizer: “porquê que não chamam outra vez os brancos para a gente viver como vivíamos no tempo colonial?”

A frontalidade com que fala não lhe tem provocado alguns dissabores no seio do MPLA, partido a que pertence?
Não vou dizer que me provoca dissabores. Mas a marginalização a que estou sujeito é resultado da posição que tenho, não só por ser um indivíduo afecto ao doutor Agostinho Neto, como, também, pela frontalidade como encaro a situação que estamos a viver. Não lutei para isso que está a acontecer no país.

Diz que se sente uma pessoa frustrada e, também, marginalizada. O que está na base da marginalização de que fala?
Não é na comunicação social que devo falar sobre isso. Devo falar sobre isso no dia em que o MPLA, o partido a que pertenço, chamar-me. Direi o porquê que estou marginalizado e afastado. 

Não tem sido um militante no activo?
Não, desde que Neto morreu. Estive mais um ano no Governo. Depois disso, fui retirado, em 1981.

A máxima de Agostinho Neto, segundo a qual “o mais importante é resolver os problemas do povo”, ainda é uma miragem?
Absolutamente. Conheço indivíduos, que trabalharam comigo no DOM – regional, no Comércio Interno e na UNTA, que, quando me procuram em casa, dizem que não comem desde anteontem. Há indivíduos que comem uma vez por dia, como os cães, e há outros que comem de dois em dois dias. Não era isso que Neto queria. Quando era ministro do Comércio Interno, a secretária de Neto, a camarada Guiomar, telefonou-me a dizer que o Presidente Neto mandou-me avisar que, amanhã, vamos seguir para Cabinda. Fomos a Cabinda e, quando regressámos, Neto mandou-me chamar, no dia seguinte, e disse-me assim: “viu Cabinda como está?” “Vi, sim, senhor”, respondi. “Então, vamos trabalhar para que o povo de Cabinda, quando for à fronteira e ver aquilo que está na fronteira com os congoleses, diga que quem vive mal são os congoleses, porque nós, cabindas, vivemos bem. Eles têm que ver que o que existe na fronteira não é nada em relação ao que existe em Cabinda. Camarada Beto Van-Dúnem, faça-me uma proposta em relação ao que pensa e ao que vai fazer em Cabinda”. Apresentei uma proposta.

Qual foi a proposta?
De como Cabinda devia funcionar em termos de bens alimentares e de bens industriais. O Presidente Neto concordou e Cabinda passou a ter coisas que, em Luanda, nem sequer existiam. A primeira aparelhagem que adquiri, comprei-a em Cabinda. O povo de Cabinda, no tempo de Neto, tinha tudo, não tinha necessidade de nada. 


Que grandes recordações guarda de Agostinho Neto?
Muitas. Foi um homem extremamente honesto, dedicado ao seu povo, simples, enfim, foi um homem que ouvia as pessoas. Aquilo que lhe diziam, ouvia. E, quando achava que o que se dizia era pertinente, considerava e punha, até, em prática. Não sei se, daqui a cem anos, vamos ter um homem como Agostinho Neto.

Qual foi a última vez que o viu?
A última vez que o vi foi quando estava a embarcar para a União Soviética. Embarcou e, dois dias depois, disseram-me que tinha morrido.

Antes da viagem, sabia do quadro clínico do Presidente Neto?
Não lhe posso dizer qual era o estado clínico do Presidente Neto, porque isso só o médico é que pode dizer. Agora, o que me admira é que, quando o camarada Iko Carreira me disse que o Presidente estava doente e que iria ser evacuado para a União Soviética, eu pensei que iria ver o Presidente numa maca, no aeroporto, ao embarcar. Quando chego ao aeroporto, e quando ficámos à espera que o Presidente chegasse, vi-o a vir com a sua comitiva. A porta do Mercedes abriu-se, o camarada Presidente desceu com a mão num dos bolsos e cumprimentou-nos, um por um. Recordo-me que me disse o seguinte quando chegou ao pé de mim: “quando voltar, temos que falar”. Eu já sabia o que é que tínhamos que falar, porque o camarada Iko Carreira tinha-me dito antes. Subiu às escadas do avião, sem agarrar no corrimão, de mão no bolso, sozinho, para dois dias depois nos dizerem que morreu. Não acredito nessa morte! Não acredito!

O que é que Neto queria transmitir-lhe quando voltasse da viagem?
Que eu sairia do Ministério do Comércio Interno, porque dizia que o Comércio já estava a funcionar. Colocar-me-ia num outro ministério. Qual, não lhe posso dizer, porque o Iko não me disse.

Admite o que sempre se especulou de que os soviéticos terão matado o Presidente Neto?
É um bocado arriscado um indivíduo fazer uma afirmação dessa natureza. Mas aquilo que eu penso – não aquilo que eu digo – é exactamente isso.

As mortes em massa, que ocorreram na sequência do 27 de Maio, não terão beliscado, até hoje, a imagem do Presidente Agostinho Neto?
Há muitas pessoas que especulam à volta disso. Sinto que há pessoas que tentam denegrir a personalidade do Presidente Neto, com o 77. Mas aquilo que aconteceu, em 1977, não foi determinado por Neto. Não confundam aquilo que ele disse, de que não haveria perdão para ninguém, com aquilo que se fez. Ele não tem absolutamente nada a ver com aquilo.

Os excessos não podem ser atribuídos a Neto, que, quando soube da dimensão do problema, acabou por extinguir a DISA, antes de morrer. É o que está a querer dizer?
Exactamente. A direcção da DISA não teve o controlo sobre os homens que tinha. Muitos elementos da DISA – eu tenho provas e conhecimento de muitos casos desses – tomaram posições e mataram indivíduos sem o conhecimento da direcção e sem a autorização de ninguém. Procuraram os seus inimigos, procuraram os indivíduos com quem não se davam, procuraram sei lá o quê, para fazer toda a espécie de atrocidades.

O que é que o Estado e, obviamente, o MPLA devem fazer para que se enalteça cada vez mais a figura de Neto, que só é relembrada, sobretudo, em Setembro de cada ano?
É divulgar o que é que foi Agostinho Neto.

Quando ouço o senhor, a leitura que faço é de que talvez exista algo em si, como recalcamento e, até, algum sentimento de orfandade.
Estou perfeitamente a entender aquilo que o meu amigo me está a dizer. Sou um indivíduo que foi afastado pelo partido e, até hoje, luto pela minha sobrevivência, o que não é correcto. Digo que não é correcto porque, quando Agostinho Neto chegou a Angola, uma das primeiras coisas que perguntou ao camarada Lúcio Lara foi sobre o que era feito dos homens do “Processo 50”. Convocou uma reunião com os homens do “Processo 50”, encontro realizado no Cazenga, dias depois de ele ter chegado a Luanda. Ele iniciou a reunião com essas palavras: “vocês foram os homens que agarram o touro pelos cornos e nós, lá fora, limitamo-nos a puxá-lo pelo rabo. Vocês merecem o respeito, a consideração e a admiração de todo o povo, principalmente da juventude angolana”.

Não disse, até agora, o motivo do seu afastamento do Governo. Não quer revelar?
Não sei. Talvez por ser um indivíduo incondicionalmente admirador do Neto. Sobre Neto, teria muito que dizer, teria muito que falar, porque era uma figura de África, uma figura da dimensão de Nelson Mandela. Tenho por ele uma grande admiração, porque conheci-o muito de perto.

Como é que o conheceu?
Conheci-o, porque Neto morava muito próximo da minha casa, a 50 ou 60 metros. Era amigo da minha família. Quando eu era garoto, via-o, quando passava por casa, em conversa com a minha mãe, que tinha a idade dele. Quando regressou a Luanda, a estima que ele tinha por mim, e pelos outros camaradas, era por ser membro do “Processo 50”.

A última viagem de Agostinho Neto para a União Soviética, por razões de saúde, foi resultado de uma decisão do Bureau Político do MPLA ou foi uma decisão pessoal de Neto?
Segundo o que eu ouvi – aliás, o IKo Carreira foi um dos que me disseram – a viagem de Agostinho Neto, para a União Soviética, para tratamento médico, foi uma decisão do Bureau Político.

Não se ventilou a possibilidade de Neto ir para um outro país?
Um embaixador nosso, que estava na altura em França, queria que ele fosse para um hospital americano, localizado em França.

Até hoje, não temos, em livro, os discursos completos de Agostinho Neto, cujo material devia estar já, também, na minha opinião, em CD. Não é algo em que já se devia pensar?
Aquilo que Agostinho Neto foi, para este país, devia ser lecionado nas escolas. Da mesma maneira que, quando entrei para a primeira classe, no tempo colonial, falávamos sobre Salazar, eu penso que, nas escolas, devia-se falar de Agostinho Neto. A juventude devia saber quem foi Agostinho Neto.

Tem ido ao Mausoléu?
Tenho ido.

Só vai em Setembro por altura da “Semana do Herói Nacional”?
Vou sempre ao Mausoléu e fico triste por ainda estar na situação em que está. Fui para lá, há dias, com um amigo, e estivemos parados, no Mausoléu, durante algum tempo. Pelo tempo que aquilo foi edificado, já devia ser um Mausoléu acabado.

Quantas vezes vai, por ano, ao Mausoléu?
Passo por lá muitas vezes. Mas vamos, oficialmente, para lá nos dias 29 de Março, dia do “Processo 50”, e 17 de Setembro, dia em que se comemora o aniversário natalício de Neto.

Defende que os restos mortais do Presidente Neto sejam enterrados?
Isto é um problema que não sou eu que tenho que defender. É um problema familiar, penso eu. Muito embora fique com alguma tristeza, quando tenho que falar sobre Agostinho Neto, a coisa que me dá alento é que, quando vou ao Mausoléu, vejo Agostinho Neto. Não o vejo como uma pessoa morta, vejo-o como uma pessoa viva e isso conforta-me, consola-me, por tudo aquilo que senti e ainda sinto por ele e por aquilo que foi em vida.

O senhor afirma que, caso Agostinho Neto vivesse, as condições de vida dos angolanos não seriam as que temos hoje em dia. Quando faz esta afirmação, não estará a criticar, explicitamente, a gestão do Presidente José Eduardo dos Santos?
Não estou a criticar ninguém. Quem sou eu para criticar? Eu só digo isso, porque, quando estava no Comércio Interno, sempre que Neto estivesse comigo, dizia-me: “camarada Beto Van-Dúnem, você tem todo o meu apoio. Não faça com que este povo pense que antes da independência é que era bom. O povo deve pensar que a independência já devia ter vindo há mais tempo. É preciso alimentação para eles. Ponha-me os hotéis a funcionar, ponha-me as boîtes a funcionar, ponha tudo a funcionar. Vamos dar ao nosso povo aquilo que pensávamos dar quando estávamos a lutar”. Era o que ele me dizia. É dentro dessa ideia, que eu digo que, se ele estivesse vivo, as coisas não estariam como estão.

Conte-nos mais alguma coisa.
Há conversas que ele teve comigo e com o Mendes de Carvalho – normalmente estávamos sempre os dois – que me impressionaram. No DOM – regional, não tínhamos equipamentos. Ele foi lá uma vez e a população queria vê-lo e ouvi-lo. Tínhamos um megafone pequenino, emprestado pelo DOM – nacional, cujo som mal se ouvia. Dois dias depois, mandou-me chamar e perguntou-me como é que fazíamos os comícios. Pediu-me para fazer uma relação daquilo que era preciso e mandou-me entregar à camarada Guiomar, a sua secretária. Passado uma ou duas semanas, a camarada Guiomar, por telefone, disse-me que o Presidente mandou-me chamar. Fui ao Palácio, e, quando lá cheguei, Agostinho Neto deu-me um salvo-conduto e um maço com notas de dólares para viajar para Portugal, para a compra de produtos, como megafones, que não haviam no país. Depois de receber o dinheiro, ele olhou para mim e disse: “camarada Beto Van-Dúnem, não se esqueça de me trazer as facturas de tudo o que comprar e as do hotel onde estiver alojado”. Fiquei a olhar para ele um pouco meio apatetado. Ele, como talvez tivesse notado em mim alguma coisa, disse: “olhe, quando estou a pedir isso, não estou a pedir por desconfiar de si, estou a pedir porque eu tenho que apresentar contas”. Talvez por ingenuidade ou mesmo por ignorância – era ainda novo e não conhecia as engrenagens governamentais -, perguntei: “então,  o camarada Presidente também apresenta contas?” Ele olhou para mim, seriamente, e disse: “o que é que o camarada Beto Van-Dúnem pensa que sou? Eu não sou o dono de Angola, sou o Presidente da República Popular de Angola e tenho que dar satisfações a este povo daquilo que faço. O camarada que traga tudo para eu depois ir à Contabilidade entregar o justificativo do dinheiro que pedi”. Passados anos, quando me chama para dizer que eu tinha que ir para o Comércio Interno, depois da conversa que mantivemos, levantou-se e acompanhou-me até à porta. Quando chegou à porta, pôs uma mão sobre o meu ombro e disse: “o camarada vai para o Comércio Interno, mas vai prestar contas, porque o camarada não é o dono do Comércio Interno. É um servidor público e, como servidor do Estado, tem que dar satisfações ao povo a quem você serve”.

E a “estória” do televisor?
O televisor é uma estória que eu já contei várias vezes. A secretária de Neto telefonou-me, porque o televisor dele tinha avariado. Ele pediu para ligarem para mim, para ver se lhe mandavam outro televisor. Foi posto um televisor novo, porque o que lá se encontrava estava completamente queimado. Dois dias depois, a secretária telefona-me a dizer que o camarada Presidente mandou perguntar quanto custou o televisor. Eu disse para a secretária que era uma oferta da empresa. Numa reunião do Conselho de Ministros, a secretária disse-me que o Presidente me estava a chamar. Entrei e, já sentado, no seu gabinete, o Neto olha para mim e diz: “é assim que os camaradas querem governar este país?” Só porque uma pessoa é Presidente da República, compra uma coisa e não paga?” Quer dizer, eu, amanhã, se for a uma “stand” qualquer de automóveis, chego lá, tiro um automóvel e não pago? Vou-me embora sem pagar, porque sou o Presidente da República? Diga-me quanto é que custou o televisor, porque se não é para pagar, pode mandar alguém buscar o aparelho”.

Qual foi a sua reacção?
Saí de lá meio envergonhado. Quando cheguei, no dia seguinte, ao Ministério, disse para passarem a factura e telefonei para o Futungo, para darem autorização para a entrada do homem que levava a factura. A camarada Guiomar, à tarde, telefonou-me e disse-me o seguinte: “camarada Beto Van-Dúnem, o camarada Presidente diz para não pôr na factura Presidência da República, ponha em nome de Agostinho Neto, porque o televisor é dele, é de quem vai pagar, com o dinheiro dele. E não se esqueça de pôr na factura PAGO”. O Neto era um homem honesto, não vivia deste país e é por isso que morreu pobre.

Durante todos esses anos, nunca se especulou, para bem da sua imagem, que é, na verdade impoluta, sobre a possibilidade de ter deixado contas no estrangeiro?
Nada, nada. Não existe nada. O Neto morreu com a roupa que tinha no corpo. Não tinha dinheiro.

Quando se fala do senhor Beto Van-Dúnem associa-se sempre o seu nome ao vinho “Mosteiro”, comprado por Angola ao Brasil, por altura em que era ministro do Comércio Interno. Esse vinho, ao que parece, chegou a matar pessoas em Angola. Quer comentar?
Eu pedi a determinadas pessoas para provarem o vinho, para ver se tinha ou não qualidade. Eles viram que o vinho tinha qualidade. Agora, o que aconteceu – e isso poucas pessoas dizem- porque o que lhes interessava era denegrir o meu nome – é que, no tempo em que o vinho veio, as pessoas não bebiam álcool há muito tempo. Vou contar-lhe dois casos concretos: eu fui ao Porto de Luanda para ver o desembarque de contentores de vinho. Estava no Porto, ao lado do barco, e vi na lona do guindaste um polícia, que se pôs lá no porão para tomar conta dos garrafões de vinho, para ninguém abrir. Ele veio completamente bêbado. Foi chamada uma ambulância, que o levou ao hospital, onde acabou por morrer. Na Martal, para onde fui, no quadro do ciclo de visitas que fazia às lojas, estava um homem deitado no chão, inanimado, quase que em coma. Umas mulheres que estavam lá disseram-me que ele havia comprado um garrafão de vinho e, quando chegou cá fora, disse: “agora vamos ver se entre tu e eu quem é que fica!” Abriu o garrafão, levou-o à boca e caiu para um lado e o garrafão para o outro.
     
               


              
               






        
  
                                                  



          
                
                                         

sexta-feira, 20 de maio de 2016

BRAVOS RAPAZES!




Bravos rapazes!

(texto publicado na revista Tranquilidade em 2009)

            Apesar dos riscos que sabiam que iriam correr num país que já vivia uma aparente instabilidade, viajaram para Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, em Junho de 2006, com o sentimento de que contribuiriam no processo democrático de um país que partilha com Angola uma longa fronteira comum.
            Entre Junho de 2006 e Fevereiro de 2007, o grupo era composto por 13 agentes da Polícia angolana que, na sequência de um convite feito a Angola pela União Europeia (UE), fizeram parte de uma missão policial desta organização europeia que tinha, entre outros objectivos, a tarefa de fiscalizar os actos da Polícia congolesa por altura das eleições presidenciais.
            Para que houvesse eleições teria de existir uma polícia apartidária", conta-nos Manuel Edmundo  da Costa Feio, na altura o chefe-adjunto do grupo de polícias angolanos que viajaram naquele ano para a República Democrática do Congo.
            E a situação do Congo era volátil, já que existia, na altura, um grupo rebelde de milícias, liderado por Jean-Pierre Bemba, um homem que chegou à vice-presidência da República Democrática do  Congo e hoje com um processo no Tribunal Penal Internacional por crimes de guerra.
            Quando a República Democrática do Congo estava às portas para a realização das eleições presidenciais, uma Unidade de Polícia Integrada, conhecida pela sigla UPI, foi criada com a integração de elementos vindos do grupo rebelde e das forças governamentais.
            Formada e financiada pela União Europeia, a UPI foi a responsável pela segurança das instituições e personalidades políticas no período de transição.
             E o trabalho dos polícias angolanos, que não foi nada fácil, foi de colaborar na coordenação dos meios da Polícia de Ordem Pública, servindo como intermediários entre as Unidades Anti-Motim da Polícia Nacional Congolesa e a Força Militar Europeia (EUFOR), para além de terem feito o enquadramento no terreno da Unidade de Polícia Integrada (UPI).
            Manuel Edmundo da Costa Feio, na conversa que manteve com a revista Tranquilidade, em Kinshasa, em Julho deste ano (2009), exteriorizou o seu pensamento quanto ao facto de não ter havido publicitação, nos órgãos de informação nacionais, da presença de polícias angolanos numa missão internacional que levaria a normalidade democrática a um país vizinho de Angola.
            "Esta iniciativa da revista Tranquilidade é louvável porque os feitos da Polícia devem ser divulgados", defendeu Manuel Edmundo da Costa Feio, acrescentando que "a União Europeia reconheceu o nosso empenho, o que é um orgulho para o nosso país".
            Manuel Edmundo da Costa Feio, fixando o olhar para o rosto do autor desta linhas, recuou no tempo para ir buscar um episódio que vem sempre à sua memória: "Chegámos a correr vários riscos, durante a missão EUPOL-Kinshasa, e riscos até de morte".
            Ele e mais alguns colegas, com quem partilhava um apartamento, que fica na movimentada Avenida "Bulevar du 30 Juin", no regresso à casa, depois de mais um dia de trabalho, ficaram, em Agosto de 2006, encurralados num fogo cruzado entre as tropas do líder rebelde Jean Pierre Bemba e as tropas governamentais.
"Tivemos sorte, porque conseguimos sair daquela situação e voltar para a unidade", sublinhou Edmundo Feio, um intendente que, em Angola, é o responsável pelo Departamento Central da Direcção Provincial da Polícia Económica.                                
            "Foi uma experiência a todos os títulos inesquecível", afirmou o intendente Edmundo Feio, que disse ainda ter o episódio acontecido logo no dia em que começaram as escaramuças, ocorridas depois da realização das eleições, mas antes do anúncio dos resultados eleitorais definitivos que deram vitória a Joseph Kabila.
            Nem por isso este episódio diminuiu o moral e a força anímica deste arrojado oficial da Polícia Nacional e dos seus colegas. Tanto é assim que voltou, em Janeiro de 2009, para a República Democrática do Congo para mais uma missão da União Europeia, desta vez para a reforma da Polícia Nacional Congolesa (PNC), no quadro de um novo convite feito por esta organização comunitária do velho continente ao Comando-Geral da Polícia Nacional.
            Dos treze elementos da Polícia Nacional que fizeram parte da EUPOL-Kinshasa, apenas três foram reconduzidos para a actual missão, desta vez denominada EUPOL-RDCONGO.
            Para além de Manuel Edmundo da Costa Feio, estão, nesta nova missão, desde Janeiro de 2009, o intendente João Domingos Matoso  e os inspectores-chefes Alfredo Joaquim Armando e Miguel Bunga. Este último, que não fez parte da primeira missão, se encontrava em Angola de férias quando a equipa de reportagem da revista Tranquilidade esteve em Kinshasa.
Para além de ser o chefe do grupo de angolanos nesta nova missão, Edmundo da Costa Feio exerce a função de conselheiro da Polícia congolesa para a Planificação e Estudos.
Membro da Polícia angolana desde seis de Maio de 1986, Edmundo da Costa Feio diz, de corpo e alma, que guardará, como recordação, nessa sua passagem pelo Congo, o facto de ter convivido com indivíduos de várias nacionalidades.
            "É uma experiência ímpar estar à mesma mesa a conversar com indivíduos doutras nacionalidades. Cada um fala do seu país, para além da troca de experiência de trabalho".
            Em conversa com colegas de outros países, segundo Edmundo Feio, a Polícia angolana é bastante elogiada. "Recebemos vários elogios. Por exemplo, de que somos uma Polícia organizada e disciplinada", disse, para acrescentar que "eles admiram-se muito como o nosso atavio e com a nossa farda".

"Alguns pensaram que não sairiam vivos
   da República Democrática do Congo"

O intendente João Domingos Matoso é daqueles homens que conseguem gerir o medo como se esse sentimento não fizesse parte do dicionário. À semelhança do que aconteceu a Edmundo Feio, João Domingos Matoso também viveu um episódio de cortar a respiração quando participou na primeira missão da União Europeia, que era a sua segunda a nível internacional. A primeira foi para a São Tomé e Príncipe, no quadro da formação da Polícia de Intervenção Rápida daquele país.
Quando passava na companhia de colegas por uma área, o seu sexto sentido funcionou, tendo solicitado ao motorista da viatura para que saísse dali porque a área não inspirava segurança.
"Mal saímos, começamos a ouvir tiros atrás de nós", resultante de um forte tiroteio que opunha os rebeldes às forças governamentais. "Em função do clima de insegurança vivido no Congo, depois das eleições, alguns de nós pensaram que não regressariam vivos a Angola", disse o intendente Matoso, afecto à Unidade Anti-terrorismo, da Polícia de Intervenção Rápida.
Formador por excelência, João Domingos Matoso participa directamente, em Kinshasa, tal como os outros dois policias angolanos, nas acções de formação da Polícia de Busca e Intervenção, enquanto o chefe Edmundo da Costa Feio exerce o papel de consultor, trabalhando em Kivu, uma região que ainda vive momentos de instabilidade militar.