(entrevista publicada no Folha 8, na edição de 10 de Maio de 2000)
ENTREVISTA A JAH ISAAC
“Todos
nós somos rastas”
Muitas vezes incompreendidos por pessoas e instituições públicas e privadas, devido aos princípios que defendem e a forma com que se apresentam em público, com os cabelos guedelhados ou dreadlocks, na verdade os rastas são indivíduos pacíficos, defensores da não-violência. Por ocasião do 19º aniversário da morte de Bob Marley, o rei do reggae, a assinalar-se quinta-feira, dia 11, este bissemanário entrevistou o “ancião” da comunidade rastafári em Angola, que fez uma radiografia sobre o movimento rasta, cuja criação, de acordo com ele, remonta ao período que antecedeu ao nascimento de Jesus Cristo. Jah Isaac, de 42 anos, considerou “enfermos, social, moral e espiritualmente”, os elementos que discriminam hoje em dia os rastas. “A ignorância é a pior arma que é usada contra a evolução e desenvolvimento das pessoas”, afirmou Jah Isaac, que acrescentou que as pessoas não têm consciência de que “todos nós somos rastas”. Numa linguagem canónica, Jah Isaac faz várias vezes, na entrevista, referência à Bíblia, sobre a qual diz ser um “livro da experiência do nosso passado, presente e futuro”. “A tradição primordial rasta é bíblica”, pontualizou.
Nhuca Júnior
Gostaria
que explicasse o conceito rasta. O que quer dizer rasta?
Jah Isaac – Rasta
significa o homem que é a imagem e semelhança do rastafarai. Rastafarai é uma
palavra originária da língua amarico (falada na Etiópia), que nós consideramos
a segunda língua proveniente do hebraico, depois do árabe. O prefixo “ras” quer
dizer Supremo e “tafarai” quer dizer Criador. Rastafarai quer dizer Supremo
Salvador. Jah é a forma curta da palavra Jeová (Deus). Quando o rasta diz está
a louvar Jah, quer dizer que dá acções de graça e louvor ao Supremo Criador.
E
qual é a ligação do Imperador etíope Hailé Selassié ao movimento rasta?
Jah Isaac – Para o
movimento rasta, Selassié é e será para sempre o rei dos reis. É o leão
triunfante da tribo de Judá, é a pessoa que cumpriu com a profecia bíblica, que
trata da segunda vinda de Cristo. Para um rasta, Selassié é o símbolo e a
imagem de Cristo. O livro Revelação, no seu capítulo 5, trata da vinda de
Cristo. Esta profecia cumpriu-se na personalidade do imperador. Hailé Selassié
quer dizer Poder Sagrado da Santíssima Trindade. A pessoa que tiver este
título, de acordo com a teologia rasta, simboliza e tem o mesmo poder que
Cristo.
Vocês
crêem na divindade do imperador Hailé Selassié?
Jah Isaac – Por norma, no
conceito rasta, o termo “crença” não é utilizado. Para ser rasta, o homem tem
que ter conhecimento. Existe um caminho teocrático da descendência de sua
majestade, da linhagem sagrada e histórica da casa de Juda. É uma perpectuação
que parte da junção da rainha da Etiópia, Sabá, e o rei Salomão, de Jerusalém,
que é filho do rei David.
O
que é que Bob Marley representou para o movimento rastafari?
Jah Isaac – Bob Marley foi
o maior embaixador rasta, o maior catalisador na divulgação e propagação da
consciência rasta em todo o mundo. Bob Marley, para além de ter sido rasta, foi
uma super-estrela da música reggae. O seu passamento físico, que aconteceu a 11
de Maio de 1981, é comemorado em todo o mundo. Nós, como rastas, temos
aproveitado esta data como um dia de reflexão, analisando a obra de Bob Marley
e a sua contribuição para a expansão do movimento rasta.
Como
rasta que é, sabe o que foi feito com a fortuna deixada por Bob Marley?
Jah Isaac – O próprio Bob
Marley não deixou testamento devido à sua convicção rasta de que o homem não
morre. Depois do seu desaparecimento físico, a família dele teve problemas com
o Estado jamaicano devido aos seus bens. Sendo uma pessoa que não deixou
testamento, todos os bens passariam para o Estado jamaicano. Bob Marley não fez
testamento porque, de acordo com a nossa convicção, os rastas não acreditam nem
crêem na morte. Os rastas aceitam a eternidade da vida. Os rastas estão cientes
de que o homem não morre. Isto faz com que os rastas tenham um profundo
respeito do nascimento do homem do que o dia da morte. Nós não vemos o Bob
Marley como nosso ídolo, vemo-lo como um
rasta, alguém que, na sua jornada terrestre, cumpriu a sua missão. Quando
falamos de Bob Marley, falamos de um rasta.
Os
rastas não acreditam em ídolos?
Jah Isaac – Para além de
não acreditarmos, não respeitamos a idolatria.
Mas
vocês consideram ídolo o imperador Selassié.
Jah Isaac – Primeiro,
temos que ver que Hailé Selassié é um título, com o são também Cristo e Buda.
Ninguém é acusado de idólatra por crer na personalidade ou divindade do homem
chamado Jesus. Ou, por exemplo, um hindu crer na missão profética de Buda. O
conceito rasta está fundamentado na Bíblia. A Bíblia diz que Cristo teria que
vir numa nova dimensão. Cristo não é uma pessoa específica, é um estado de
espírito, é um estado de iluminação que todas as pessoas ligadas à
espiritualidade e à divindade devem atingir. Moisés atingiu este estado de
espírito, Buda atingiu este estado de espírito e muitos outros avatários.
Quando falamos de Selassié, estamos a falar de um avatário. É este avatário que
aparece ou manifesta o cumprimento da segunda vinda de Cristo.
Fale-nos
da origem do movimento rastafári.
Jah Isaac – O movimento
rastafári é um movimento teocrático, religioso, espiritual, cultural e
emancipalista. Surgiu há mais de 300 anos. O termo surgir não é o mais correcto
por se tratar de um ressurgimento. Rasta tem a ver com a história do homem, com
a criação e a evolução do homem. É impossível falarmos da história do rasta sem
falarmos da maior catástrofe que foi chamada hecatombe – o tráfico de escravos
– que levou a que muitos dos nossos irmãos fossem desarraigados de África para
as Américas e Europa. A identidade do africano, como ser humano, do ponto de
vista cultural e científico, foi desarraigada.
Vocês
vêem o vosso movimento como cultural e,
ao mesmo tempo, religioso?
Jah Isaac – O que é a
religião? Nós muitas vezes não entendemos o que é a religião. Literalmente,
religião significa comungar. O homem precisa de procurar o seu “eu” interior.
Este “eu” interior é que muitas pessoas decidiram conceber como Deus. Deus é
uma personalidade incognoscível, não pode ser definido. É indefinível. É uma
espécie de consciência universal, infinita e é por isso que nós percebemos Deus
de acordo com o nosso coração e compreensão. O movimento rastafári exprime a
plenitude do conhecimento e da sabedoria do homem. Quer dizer que todos os
fundamentos do conhecimento, da filosofia, ou da verdade estão incluídos dentro
do espírito e da consciência rasta. É um estado de espírito e um modo de vida.
Quando falamos é um modo de vida, queremos dizer que, aquilo que chamamos
religião, é parte do movimento.
Como
é que o movimento começa?
Jah Isaac – Desde a
criação do homem, o rasta sempre existiu. Um dia, quando o irmão Nhuca segurar
a Bíblia, leia onde diz “façamos o homem”. Quem é este que está a falar? São
aqueles que caminharam com o Criador desde a sua criação, ou seja, forças
espirituais. O conceito rasta é universal, embora tenha particularidade para a
emancipação dos etíopes ou dos africanos.
O
movimento rastafári surgiu no corno de África, mas o seu desenvolvimento ocorre
nas Caraíbas. Não é verdade?
Jah Isaac – O movimento
surgiu em toda a parte de África. Quando falamos de Etiópia, estamos a falar do
continente inteiro, porque Etiópia é o nome original deste continente e deste
povo. O irmão sabe que o nome Etiópia só foi aplicado àquele país depois da Segunda
Guerra Mundial? Antes, era Reino da Abissínia. Etiópia é o nome original deste
continente. Biblicamente, e nos arquivos sobre a história passada, o continente
é Etiópia. Etiópia quer dizer a terra do homem preto ou terra do fogo queimado.
Podemos aceitar que ressurgiu nas Caraíbas, mas, apesar de ter estado
adormecido, em África sempre existiu a comunidade rasta. O conceito rasta vem
de África, das margens do rio Nilo, lá em baixo nas terras de Nero, da Núbia.
Como
se expandiu?
Jah Isaac – Expandiu-se
assim que a humanidade foi evoluindo. Nós temos o erro de atribuir o monoteísmo
aos hebreus. Não foram os hebreus que estabeleceram o monoteísmo no mundo.
Foram os etíopes. Foi o grande cidadão universal Amenhotep IV Aknaton que
estabeleceu o monoteísmo. Foi em Teiba (Thebes) onde este conceito propagou-se
e onde os etíopes adquiriram esse conhecimento. Esse conhecimento vem de um
antigo continente, o Atlântida, que há mais de vinte mil anos desapareceu.
Em
função desses princípios e conhecimentos que têm em relação a tudo isso que
falou até agora, vocês, rastas, são compreendidos?
Jah Isaac – Isto é
realidade e é história, irmão Nhuca. Se as pessoas na realidade têm uma compreensão
muito relativa, muito limitada, é claro que não podem entender. Não foi há 500
anos que o rasta apareceu!
Este
assunto ligado ao rastafarismo não é referenciado na História Universal. Como
explica isso?
Jah Isaac – A explicação
que posso dar é que os irmãos estão ligados aos “ismos”. Nós, os rastas, somos
contra os “ismos” e os “sismas” Quando ligas o rasta ao “ismo” é como se o
estivesses a ligar na mesma família do Capitalismo, Socialismo, Imperialismo,
colonialismo e neocolonialismo. Rasta e rastafarai. O movimento rasta tem
ciclos de existência.
Mas
também a Bíblia não faz, em momento algum, referência a rastafarai…
Jah Isaac – Como é que não
faz, se aí fala de Israel, de Moisés, da criação e de Jah? No princípio tudo
era universo, o Jah criou o homem, que foi feito à sua imagem e semelhança.
Este
movimento terá atingido naqueles tempos o seu apogeu, mas actualmente está em
declínio. Não faz essa leitura?
Jah Isaac – O rasta nunca
morre, é imortal, é eterno.
A
cultura rastafári não é conhecida por muita gente...
Jah Isaac – Só se não for
conhecida por pessoas que não se conhecem, aquelas que são como troncos secos.
Marcus Garvey disse que o homem que não conhece a sua história, a sua origem
nem a sua cultura é como uma árvore sem raízes. Todo o mundo é rasta, mas as
pessoas não estão conscientes disso.
O
movimento rastafári não é propriamente uma religião, mas tem ligações muito
proféticas. Diz-se que não se crê, mas vocês recorrem à personalidade dos
mandamentos bíblicos. Gostaria que se explicasse melhor.
Jah Isaac – O rasta é uma
pessoa mística e o místico é o homem que vive de acordo com a experiência. A
experiencia dá-nos conhecimentos. Não cremos numa coisa quando não a
conhecemos. Cria-nos dúvidas. O rasta não tem crença, mas sim conhecimentos.
Em
Angola, como noutras partes do mundo, vocês são vistos como marginais, pessoas
associadas ao consumo de drogas...
Jah Isaac – Temos que
partir da experiência bíblica. Cristo foi uma pessoa que há dois mil anos foi
considerado como um pária. A ordem estabelecida, que era a ordem romana,
denegriu a personalidade de Cristo. Foi condenado por ter pregado simplesmente
a mensagem da paz e do amor. Isso é só para dizer que existem pessoas que não
fazem o mínimo esforço para conhecerem a vivência rasta. Se chegarem até a um
rasta e conhecerem a sua vivência, poderão saber que o rasta é uma pessoa útil
e sociável. O que o rasta está a fazer é apelar para a consciência da Nação,
para que a sociedade entenda que o amor é a solução dos nossos problemas.
Qual
é a interpretação da imagem do rasta guedelhado e não guedelhado, bem como a do
ital (rasta vegetariano)?
Jah Isaac – O rastafariano
está ligado ao desenvolvimento espiritual. De acordo com os princípios do
movimento, um rasta é um nazareno e, na qualidade de nazareno, não pode cortar
o cabelo nem a barba. São preceitos teocráticos e bíblicos que o rasta vive. O
termo ital (palavra rasta) surge para diferenciar o rasta vegetariano do não
vegetariano.
As
comunidades rastafáris estão espalhadas um pouco por todo o mundo. Como tem
sido o intercâmbio entre vocês?
Jah Isaac – Existe uma comunicação
por carta e também um jornal chamado “Jahug”, que é editado na Inglaterra,
África do Sul e nas Caraíbas. Este jornal tem uma página de correspondência
denominada “África Pen Pal”. Em Angola, a comunidade rasta está crescendo,
embora lentamente. Podemos dizer que, nestes últimos anos, a manifestação da
aparência rasta que eu chamo a manifestação exterior – que são as pessoas
guedelhadas – está a crescer. Existem comunidades rastas em Luanda, Cabinda,
Benguela, Uíge e Huíla. Luanda tem o maior número de rastas. Nós estamos a
trabalhar no aspecto jurídico da comunidade.
Os
rastas conhecem profundamente a Bíblia?
Jah Isaac – Os rastas
consideram a escritura bíblica, apesar das suas distorções, como um livro da
experiência do nosso passado, presente e futuro. A tradição primordial rasta é
bíblica.
Para
os rastas, que contribuição deu Marcus Garvey ao movimento rastafári?
Jah Isaac – Marcus Garvey
é, para nós, o precursor da consciência rasta. Falar de rasta sem falar de
Garvey, penso que seria falar de árvores sem tocarmos nas suas raízes. Garvey é
o pai do conceito que é hoje chamado de pan-africanismo. É em Garvey que temos
o precursor, o preparador da vinda de Selassié na qualidade de rei dos reis. Marcus
Garvey nasceu no dia 17 de Agosto de 1887, na Jamaica. É filho de africanos.
Muito cedo descobriu as péssimas condições de vida do povo africano na Jamaica
e, depois, em todas as ilhas caribenhas. Fundou o movimento que foi chamado
“Movimento de Regresso a África”. O objectivo do movimento era a emancipação
total dos africanos e a criação de um lugar no centro das nações para a
personalidade africana. Criou as bases para o caminho que nos levou até à
independência africana. Tal como Selassié e Marley, Garvey não pode ser
considerado um homem morto. O seu desaparecimento físico aconteceu, em Londres,
a 10 de Junho de 1940.
Fale-me
do vosso dia-a-dia, do vosso relacionamento com as instituições do Estado. Como
são vistos hoje em dia na sociedade?
Jah Isaac – Nós vivemos
dentro de uma sociedade, pelo que a nossa liberdade termina onde inicia a de
outrem. Agora, se ainda há pessoas que têm preconceito, eu penso que podemos
considerá-lasenfermas, social, moral e espiritualmente. A sociedade está em
constante mudança. A ignorância é a pior arma que é usada contra a evolução e
desenvolvimento das pessoas. Há dez anos atrás era impossível um rasta entrar
numa instituição estatal sem que não tivesse problemas de discriminação. Mas
hoje em dia não é o caso. Mas há casos em que as pessoas não têm sido honestas,
como, por exemplo, no acesso a emprego. Tendo como concorrente dois elementos,
um dos quais rasta, a entidade empregadora opta pelo que não tem cabelo
guedelhado, quer dizer, pelo não rasta.
Mas
vocês são vistos como marginais, consumidores de droga, um preconceito que, à
partida, não facilita a entrada de rastas para o mercado de trabalho. Quero
ouvir o seu comentário.
Jah Isaac – O consumo de
erva é um aspecto da cosmologia rasta. Nós, rastas, estamos a lutar para a
erradicação de todo o tipo de drogas. Quando falamos de drogas, estamos a
incluir as bebidas alcoólicas.
Também
as ervas, como a marijuana, conhecida em Angola por liamba?
Jah Isaac – É uma planta,
sobre cuja abordagem podemos fazer uma análise no campo científico.
A
marijuana, para vocês, não é droga?
Jah Isaac – É uma planta.
Foi criada pelo nosso Criador.
A
classe médica enquadra a marijuana no conjunto das drogas...
Jah Isaac – Há uma
contradição entre a ordem médica internacional. Uns aprovam. Eles prescrevem a
marijuana aos seus doentes e, ao mesmo tempo, proclamam a luta contra ela. Eu
não sei qual de nós está errado, afinal de contas (risos)…porque a marijuana é
uma planta, ou seja, a cannabis. É normal um ser humano usar aquela planta.
I man agradece ao Jah RastafarI pela honra de ler na íntegra essa entrevista que venho procurando. sucessos para o blog
ResponderEliminarI man agradece ao Jah RastafarI pela honra de ler na íntegra essa entrevista que venho procurando. sucessos para o blog
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